O que pode um território? Nota para as políticas públicas após um seminário

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O que pode um território?

 

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Imagem de um brócolis romanesco, que se territorializa de forma fractal.

É com essa indagação que saí do III Seminário Regional de Psicologia e Políticas Públicas e IX Seminário Regional de Psicologia e Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro.

O evento, que aconteceu nos dias 13 e 14 de novembro na UERJ, foi todo transmitido pela RedeHumanizaSUS.

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Então éramos eu, minha querida amiga Iza Sandenberg e meus parceiros do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade que ficamos por dois dias pilotando a transmissão e instigados por um debate e temáticas que se territorializavam em espaços diferentes. Entretanto, a questão de fundo era a mesma, como afirmar a potência e diversidade da vida em um tempo onde o pensamento e as práticas se querem cada vez mais totalizantes e universalizantes?

 

 

 

 

 

A luta pelo território se apresenta de diferentes formas, e é com essa assertiva que, logo de início, a mesa  O corpo é meu: Despatologiza! trouxe para dentro do debate essa questão: porque a afirmação de certos direitos precisa passar pela subjetivação de um corpo abjeto e desviante? Porque no séc. XXI ainda esperamos que para ser considerada pessoa trans, homens e mulheres tenham que se afirmar como corpos patológicos? A luta biopolítica do corpo trans é um espaço de tensão, onde, por vezes, a voz de quem experiencia o processo parece o menos importante.

É com essa tônica que faço minha leitura do que vivi. Nos dias de hoje, parece que as políticas públicas estão à mercê de uma lógica que tenta se territorializar nos mais variados espaços, em um processo de cooptação da potência da vida. Aliás, será esse o papel das políticas, a de controle?

Como compreender que junto com os 50 anos de golpe militar possamos estar em meio a um processo de criminalização e enquadramento de certas manifestações populares?

Aqui parece que temos uma pista: é para a produção de um corpo dócil e controlado que as políticas públicas funcionam. Talvez, e como dentro das políticas públicas, essa seja uma questão de início, as políticas públicas têm produzido que tipo de ser humano?

São as famílias re-visitadas ad infitinitum para o controle do seu desempenho 'social', são os corpos 'abjetos' que precisam ser 'normalizados' através de um laudo patologizador, são os manifestantes que precisam ser controlados por escutas telefônicas ou controle em instituições totais, são nossos desejos controlados por meio de propagandas de indústria farmacêutica que nos fazem desejar um objeto ainda inexistente no mercado.

As linhas de enfrentamento só mostram como essa é uma luta que se espalha em nosso cotidiano por meio dessa mesma lógica totalizante, do processo transexualizador compulsório e do implante coclear obrigatório, o que vemos é um mundo que parece negar a dúvida e o dissenso por meio de uma gramática do direito. O perigo é a de fincarmos os nossos pés no pensamento dicotômico.

É preciso lembrar mais, que ao fincarmos nossos pés em algum território estamos afirmando uma construção que poderia ter sido outra.

Acreditar que nossos serviços e políticas públicas possam mais é a premissa que precisa ser posta em operação. Já que é a partir do território, ou ainda, da territorialização de certas práticas, que podemos propor mudanças. Mas será que nossas práticas, quando territorializadas, não estão sendo cooptadas por uma lógica que nega a potência da criação?

Quando as nossas práticas nas pontas dos serviços estão sendo precarizadas, ou ainda, não reverberam na comunidade do entorno, a questão que fica é, em que espaço temos atuado? Estamos satisfeitos com o papel de inquisidores, dos que produzem laudos, relatórios e números? Afinal, associar o termo vulnerável a um número no Cadastro Único para Programas Sociais é para proteção ou para o controle dessas populações?

A 'real' política pública, vivida pelos trabalhadores, precisa ser levada adiante. Não basta dizer que há incongruência, é preciso propor, articulando em nossos territórios, formas de operação que subvertam a lógica do discurso da falta e ausência. E pior, que esse discurso sirva como aval para a entrada de lógicas totalizantes. A cartografia dessas práticas, dos desafios e avanços, é a que vai possibilitar a criação de arranjos e a potencialização de outras formas de viver e territorializar as práticas.

 

Como reflexão ainda penso em como reiteramos uma forma de controle nos corpos e territórios que privilegiam certas práticas e condenam outras.

O crack, que divide com a cocaína e o metilfenidato parentesco de princípio ativo e modus operandi no corpo, só reitera que os espaços, no mundo contemporâneo, só devem ser os produtivos. E por isso, a cocaína, droga do capitalismo, não é combatida da mesma forma que o crack, que produz estéticas sujas e perigosas, como no combate às crackolândias Brasil afora. Mais sugestivo é perceber que é uma droga, metilfenidato, o prescrito para crianças que fogem da 'normalidade' no contexto escolar.

Espaços e pessoas 'improdutivas' parecem os grandes inimigos atuais. E não por um acaso, é nos conflitos de terras/espaços e de corpos que se trava a discussão de práticas que ora parecem propor formas alternativas de vida, ora de controle e higienização. É preciso estar atento.