Matriciamento e Cultura do Cuidado.
Para sustentar a ideia de matriciamento temos que assumir um pressuposto sobre o papel dos profissionais da saúde que tem um caráter revolucionário.
Ao realizarmos encaminhamentos entre níveis de complexidade estamos executando um roteiro baseado em fundamentos positivistas inconfessados. Muitos de nós não podem abrir mão da ideia de que o conhecimento técnico é absoluto e localizado no intelecto de quem domina a arte: o especialista.
Ou seja, a vivência do sofrimento, os hábitos e os determinantes que caracterizam os modos de ser e agir do usuário são irrelevantes. Ele pode ignorar como adoeceu e não será chamado, necessariamente, a pensar o processo de seu adoecimento. Ele será o paciente a quem serão aplicados um conjunto de técnicas, desenvolvidas a partir de saberes múltiplos e integrados na lógica da transferência da responsabilidade entre especialistas.
Os trabalhadores da saúde são, por essa visão, detentores de um capital simbólico que lhes outorga a prerrogativa de intervenção sobre o corpo e as condutas do usuário. Como a gama de saberes é grande, e não para de ser ampliada pelo ensino/pesquisa, temos uma divisão das prerrogativas de intervenção entre uma série de corporações profissionais e ao longo dos degraus da pirâmide da divisão social do trabalho.
Fica subentendido que o topo da escala de saber/poder está localizado no território num templo de sábios: o hospital, suas salas cirúrgicas e CTIs. Tacitamente é aceito que os trabalhadores da saúde não devem, necessariamente, compartilhar seu conhecimento. Nem entre si, e menos ainda com o usuário. Nesse modelo tradicional, compartilhar é mais uma estratégia de conveniência do que um princípio ético. A ação pedagógica de ensinar e compartilhar com o usuário os saberes que detemos sobre seu sofrimento, embora cotidiana em qualquer ação de saúde, é subestimada e subvalorizada.
Ou, em outras palavras, esse diálogo não é percebido como essencial. Podemos, e por isso trabalhamos e somos relevantes, “curar” o usuário independentemente de sua vontade, de seu consentimento e de seu saber sobre sua própria existência. Admite-se que informar seja necessário, pois facilita nosso trabalho, ajuda o paciente e, quando conveniente, explica o fracasso de nossa intervenção.
Basicamente, o paciente só informado do que é necessário para aderir, ou seja para seguir nossas prescrições. Não é fundamental que ele tenha autonomia e decida. Ele deve seguir nossa orientação, sustentada em nosso saber/poder e nós transferimos nossa responsabilidade; fazendo o usuário itinerar pelas várias disciplinas das corporações profissionais e divisão social do trabalho na saúde.
Então, inter-consultas, documentos de referência e contra-referência se baseiam nessa lógica. Encaminhamento é um termo/conceito que pode perfeitamente ser substituído por transferência de responsabilidade. O usuário passa por instâncias de poder deslocando-se pelo território ao longo do tempo. O trabalhador é responsável por frações do processo de trabalho multidisciplinar. Esse tipo de fordismo nos processos de trabalho em saúde depende de ocultarmos o protagonismo do usuário, chamado de paciente.
O fato é que todo o pressuposto exige que tenhamos alguma medida de fé. É essencialmente uma aposta. O problema do paradigma das disjunções disciplinares (e da transferência de responsabilidade) é que ele está fundamentado em falsas evidências. O paciente nunca é paciente. Ele sempre resiste, se humaniza diante da tentativa de simplificação de sua condição. O paciente é na verdade um rebelde.
Negar isso exige um salto de fé fundamentalista e muito arriscado. Embora a necessidade de segurança jurídica e técnica seja sempre argumentada quando se defende a transferência de responsabilidade como alternativa viável a lógica do matriciamento, ao final é muito mais arriscado não compartilhar responsabilidades.
Quem de nós segue as prescrições sem formular alguma forma de julgamento íntimo sobre sua eficácia e pertinência? Precisamos silenciar nosso ceticismo, acreditando no profissional que nos ordena uma conduta. Quem diante de um encaminhamento truncado, apenas aceita e espera?
Um documento de referência relatando ideação suicida como justificativa para passar a responsabilidade do cuidado da atenção básica para um ambulatório de psiquiatria (onde o psiquiatra se encastela e se protege da realidade violenta e visceral do território,) pode ficar dois anos engavetado. Mas, se o usuário não se suicida de fato, o pedido era injustificado ou, o usuário e seus familiares traçaram uma rota alternativa. Fizeram sua própria linha do cuidado.
Dito de outra forma, em dois anos, ou alguma medida terapêutica foi tomada ou, o encaminhamento era uma falácia. Nesse caso, encaminhar é abandonar o usuário a sua sorte e transferir a responsabilidade para outros colegas.
Nos serviços territorializados, como os postos da Estratégia de Saúde da Família (ESF), essa lógica é desvelada como uma falácia. O sofredor, seguirá sua vida enquanto espera pela consulta especializada, voltará sistematicamente ao serviço, onde conhece os profissionais por seus nomes e onde é reconhecido. Encaminhar não resolve o problema. Usuários e trabalhadores estão enlaçados pela convivência cotidiana.
Nas grandes Unidades Básicas de Saúde (UBS) e centros de saúde, essa lógica tem sua eficácia, na medida em que os usuários são praticamente anônimos. Os encadeamentos das estratégias do usuário para lidar com os pontos de atenção da rede são ocultados. O pressuposto da transferência de responsabilidade se sustenta no tradicional “me engana, que eu me viro”. O usuário sai da frente de um profissional de saúde com a informação duvidosa de que em algum lugar, em algum dia, a ser agendado, algum profissional competente irá resolver seu problema. Enquanto isso, será mesmo que ele segue paciente, esperando, enquanto seu problema permanece por ser sanado?
A capacidade de lidar com a realidade sem violentar sua complexidade é a grande vantagem do matriciamento. O eixo de poder se desloca, junto com o protagonismo para o círculo de afetos do usuário. É ele (em aliança com os profissionais com os quais tem vínculo, com seus familiares e amigos) que se torna o promotor de sua saúde.
A lógica, então, se inverte. E, é a partir da assessoria técnica dos profissionais da saúde que o usuário realiza a sua tomada de decisão. E, de fato, a decisão sempre coube ao usuário, tanto em seus custos, quanto em benefícios. Nossa definição melhor enquanto trabalhadores da saúde é a de mediadores da circulação do saber. Ela nos serve, em nossa dupla dimensão existencial: Como trabalhadores da saúde e como usuários de sistemas e processos de trabalho em saúde. Pois somos nós que melhor entendemos a noção de autonomia e protagonismo no momento em que adoecemos.
Mas, efetivar o compartilhamento da responsabilidade entre equipes, abandonando a falácia da hierarquia dos níveis de complexidade, exige um salto de fé mais promissor em termos de possibilidades de eficácia. Desse modo, é que não basta ler o manual prático do matriciamento, ser fã dos autores que detém o capital simbólico referente essa configuração de saber/poder que desloca o protagonismo para o lado do usuário e distribui a responsabilidade entre nós trabalhadores e o usuário/comunidade.
Aqui é que saber/racionalizar e saber/fazer separam os profissionais comprometidos com o SUS e aqueles que, eventualmente o defendem e sistematicamente resguardam seus interesses corporativos.
Por Marco Pires
Defesa do SUS