18 de maio: Dia Nacional de Luta Antimanicomial Sobre os muros que ainda precisamos derrubar

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Semanas atrás eu soube que a maneira mais rápida de fazer um ovo apodrecer é envernizando-o. A explicação é a seguinte: o ovo, apesar de parecer um sistema fechado, não é. O ovo é totalmente poroso, o que faz dele um sistema completamente permeável ao mundo externo, ou seja, o que está dentro da casca se comunica com o que está fora e é isso que mantém sua saúde, digamos. É por isso que um ovo dura, sem apodrecer, até 15 dias fora da geladeira, entretanto, se você cobre sua casca com verniz, impede a comunicação do que está dentro do ovo com o mundo externo e ele apodrece em algumas horas.

O resultado de tal experiência se dá por causa de um princípio da biologia que rege todos os sistemas. Segundo tal princípio todo sistema fechado tende a uma maior entropia, ou seja, tende a uma perda progressiva de energia, o que leva a morte daquele sistema. Por outro lado, todo sistema aberto é autossustentável, na medida em que é capaz de buscar energia do ambiente externo e assim, atingir as condições de estabilidade necessárias para a sustentação da vida.

Não é difícil transpor este princípio da biologia para explicar o que tem acontecido com os hospitais psiquiátricos brasileiros nas últimas décadas. É fácil entender que o que aconteceu com tais estabelecimentos – sistemas fechados por estrutura – foi exatamente a perda de energia e de vitalidade internas, que provocaram o seu adoecimento, seu apodrecimento e sua morte.

É fato que os muros dos nossos manicômios foram descontruídos de fora para dentro pelo movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, ainda em curso, mas depois de saber sobre esta experiência com o ovo, estou certa de que os hospícios também morreram de dentro para fora. Antes que quebrássemos sua casca já estavam apodrecidos por dentro.

O desafio que temos hoje ao pensar nossos dispositivos de saúde mental, portanto, é o de sustentarmos sistemas abertos, permeáveis, arejados, comunicantes. Os serviços que inventamos para substituir o modelo manicomial – CAPS, Residências Terapêuticas, Centros de Convivência e quaisquer outros – precisam estar avisados de que estar aberto ao mundo externo e suas vicissitudes, se faz fundamental para a saúde dos mesmos e daqueles que lá estão sob nossos cuidados. Se não estivermos atentos a isso corremos o risco que envernizar nossos serviços, acreditando que ao fazê-lo estamos protegendo-os ou lhes oferecendo um cuidado extra. Impermeabilizar nossos serviços, todavia, é condená-los a morte.

Mas apesar de tudo que fizemos para descontruir a arquitetura manicomial, muitas vezes ainda mantemos a mesma mentalidade manicomial de antes, quando acreditamos, por exemplo, que oferecer cuidados é sinônimo de fechar, trancar, prender. O que se impõe a nós, portanto, é um desafio tremendo: Cuidar sem fechar. Proteger sem trancar. Acolher sem prender. E as estratégias para cumprir tais desafios são bem mais difíceis que as de outrora. Obviamente que era muito mais fácil, pelo menos para nós cuidadores e profissionais da saúde mental, quando tínhamos a chave da porta.

Entretanto, quem escolheu trabalhar no campo da saúde mental pelo modo não manicomial não está à procura de caminhos fáceis. O que queremos são os caminhos melhores e mais humanos, em geral, bem mais difíceis de pensar e articular. Queremos aqueles caminhos que permitam que a gente siga juntos, se esbarrando por aí nesse mundo, que tem lá suas mazelas e perigos, mas que é lindo, porque é vivo e cheio de energia. Ninguém, mesmo aquele sob o tormento da loucura extrema, deseja apodrecer dentro de um ovo. Aliás, todos os esforços dos nossos queridos, que chamamos pacientes, são para ficarem melhores, mais saudáveis, menos atormentados. Desejam saúde, e é o que nós também desejamos.

Sendo assim, cuidemos para que nossos serviços sejam os mais abertos possíveis, cada vez mais capazes de colher a vitalidade e a energia do seu ambiente, do seu território. A força dos novos dispositivos que inventamos, precisamos entender, não está na força de sua arquitetura ou na sua capacidade de proteger e guardar, pelo contrário, está na sua permeabilidade, na sua flexibilidade e nos seus buracos abertos para exterior. O mundo externo, nesse caso, não serve para nos contaminar ou amedrontar, na verdade é o que nos mantém saudáveis e vivos.

Recentemente tivemos um pedido inusitado numa assembleia do CAPS Leste – onde eu trabalho – um familiar solicitava que fechássemos o portão do serviço para evitar que os pacientes ficassem à mercê dos perigos da rua. É interessante que quando os manicômios foram inventados a justificativa era a de que era necessário proteger os cidadãos dos chamados loucos, ou proteger os loucos de si mesmos. A loucura era enclausurada quando oferecia risco para si e para terceiros. Interessante que o pedido agora venha no sentido inverso. O portão deve ser fechado porque o mundo lá fora é que oferece riscos às pessoas com problemas mentais. Ao que parece, esse desejo de manicômio tende a sempre a retornar quando se trata de lidar com o sofrimento mental. Seja pelo lado de fora ou pelo lado dentro, “fechar portas” ainda é visto como uma opção possível nesse campo de intervenção.

Mais uma vez comemoramos no 18 de maio, o Dia Nacional de Luta Antimanicomial. Há quem diga que não há mais motivo para levantarmos bandeiras já que a Reforma Psiquiátrica está num curso sem volta. Eu não penso assim, porque o desejo de manicômio ainda se faz presente. Mesmo que seu aparato arquitetônico esteja quase todo desmontado, ainda escorregamos em intervenções com este modelo. Nossa sociedade ainda fica seduzida com instituições que isolam e cerceiam a liberdade como resposta para nossos mal-estares, individuais ou sociais. Basta olhar para as prisões, para os argumentos que defendem a redução da maioridade penal, para as demandas de tratamento para pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas.

A nossa ilusão com os sistemas fechados ainda persiste, por isso, é importante fazer circular a ideia de que tais sistemas, se é que já não estão podres, não irão se sustentar por muito tempo sem apodrecer. E avisados disso, neste 18 de maio, precisamos radicalizar ainda mais a experiência de abertura de nossos serviços de saúde mental para o mundo, para o nosso território, para a rede. Afinal, derrubar muros para auxiliar as pessoas a fazer laço continua sendo a nossa mais importante missão.