REFLEXÕES DE BALCÃO: MEDICAMENTO (NÃO) É MERCADORIA.
Hoje vivi uma experiência no trabalho que me fez refletir sobre as políticas públicas e a construção e desconstrução social de um certo modo de produzir saúde.
Trabalho em um Centro de Saúde da cidade de Campinas-SP, sou farmacêutica e grande parte do meu tempo de trabalho é dedicado à dispensação de medicamentos. Tenho tentado transformar este curto contato, este pequeno espaço de tempo com o usuári@ em algum cuidado. Hoje, atendi uma adolescente de 16 anos, ela era a 17ª na fila de 30 pessoas que aguardava o atendimento. Essa mulher estava com uma infecção vaginal e há uma semana guardava consigo a prescrição do medicamento, um antibiótico de uso vaginal, pois estava com medo de usá-lo. Não sabia como fazer. Começamos a conversar e logo uma amiga dela se juntou. Elas tinham muitas dúvidas sobre o medicamento, sobre a sexualidade e sobre o auto cuidado. Conversávamos. Em um certo momento, daqueles 7 minutos no atendimento, uma usuária que aguardava na fila, reclamou. Reclamou alto que eu estava "conversando" e não "entregava" os medicamentos. Ela gritou, xingou e se descontrolou por fim. Foi levada a uma sala por outra trabalhadora e acolhida. Ela está em sofrimento psíquico e recebe cuidados da equipe no Centro de Saúde.
Fiquei deveras chateada e triste com esta situação. Mas estive refletindo sobre lugar da farmácia e do medicamento no serviço de saúde.
Que objeto é esse, o medicamento, que se parece mais com uma mercadoria?
O medicamento é na nossa sociedade um bem de consumo. No cotidiano, a drogaria se mistura nas ruas e nos shoppings a lojas de roupas, sapatos e perfumes. Os medicamentos são oferecidos em bacias, com promoções pague 2 leve 3. Compramos medicamentos como compramos pão.
Nossas políticas públicas tem promovido um acesso diferente ao medicamento? Penso que não. Atualmente o financiamento da Assistência Farmacêutica mal cobre os custos com os medicamentos e não há de fato um investimento em recursos humanos e infra-estrutura. Promover o acesso a medicamentos essenciais ainda é um desafio para grande parte dos municípios e não raro os usuários precisam recorrer a compra para garantir seus tratamentos. As farmácias possuem estrutura precária e concretamente muitas vezes grades e vidros bloqueiam um contato direto entre o profissional que atende na farmácia e o usuário do medicamento. A entrega é rápida, impessoal e focada no medicamento.
É sempre assim? Não, é claro que não. Há experiências, construções e desconstruções por todos os lados. O incômodo que me surge e a pergunta que me faço é, o quanto estamos realmente refletindo sobre estes processos e o quanto as políticas públicas se preocupam em desconstruir este modelo. Oferecemos práticas integrativas, múltiplas terapias, mas ele está lá, a ferramenta, a intervenção desejada, a solução do medicamento. Solução que se torna problema, solução que se torna milagre.
Transformar a forma como promovemos o acesso aos medicamentos é essencial para mudar a relação que estabelecemos com esta importante e essencial ferramenta do cuidado à saúde. É preciso tornar a assistência farmacêutica uma oferta de cuidado e não de uma mercadoria. Incluir a farmácia e seus profissionais no cuidado, incluir cuidado no acesso aos medicamentos. Parece simples, mas não é. Isso exige uma mudança de política pública e de cultura.
Por patrinutri
Muito obrigada por ter trazido este tema para a RedeHumanizasus!
Você nos fala também, além da importante questão dos uso e dispensação de medicamento, do que na verdade é o trabalho em saúde: um espaço relacional, onde o vivido é intenso, cheio de emoções e troca de saberes.
E ao mesmo tempo este é um espaço pouco valorizado como trabalho, é tido como conversas…
É mesmo neste momento que a "mágica" do trabalho em saúde acontece, onde a escuta pode ser qualificada, onde a dimensão subjetiva da saúde/doença se mostra, onde o conhecimento clínico se torna efetivo, mas onde as pessoas se afetam (afetam os outros e são afetadas por eles). Sim, não há só uma via nesta relação entre trabalhador de saúde e usuários do SUS.
Trabalho em saúde é um espaço antes de tudo dialógico!
Durante a leitura de seu relato, me veio a tona a importância do trabalho dos farmacêuticos nas equipes de saúde e muitas vezes pouco valorizados e colocados num espaço de dispensadores de medicamentos controlados. Com certeza, cabe também a estes profissionais e desviarem apenas das tarefas burocráticas e se fazem presentes nas relações com as equipes de saúde. E ainda requer também dos gestores a valorização desta profissão tão significativa na saúde.
Tenho acompanhado vários NASFs com a presença e atuação valorosa dos farmacêuticos, em contato com os ACS, visitas domiciliares e também em trabalhos de redução de prescrição e utilização de substâncias psicoativas.
Fiquei pensando que está na hora das equipes reverem a atuação dos farmacêuticos na dispensação de medicamentos. Como seria enriquecedor se ao invés de uma fila, pudéssemos ter uma roda de conversa de 15 minutos que fosse sobre estes medicamentos e aí sim termos a dispensação dos mesmo…
Que tal tentarmos? Você topa?
Vai dar um desassossego, como diria Fernando Pessoa, mas com certeza seria um trabalho bem mais prazeroso e promotor de saúde!
Grande abraço,
Patrícia