As Três Mortes de Adílio

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Adílio tinha pressa. Era necessário cortar caminho. E lá foi ele na direção dos trilhos. Deve ter calculado a velocidade que teria que andar para não ser atropelado. Provavelmente já tinha feito isso outras vezes. Mas naquele dia algo deu errado. Um passo a mais ou a menos, uma fração de segundo e sua vida esvaiu-se diante do metal frio.

E lá está o poeta num café. Isso deve ter ocorrido a quase 100 anos, é ele que nos conta:

"Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida." 1

Já se saudava a morte de forma mecânica. Mas ainda assim sua presença determinava uma certa diminuição de ritmos mesmo que todos estivessem absortos na vida. O chapéu era retirado da cabeça, alguma reflexão se fazia…

Mas voltamos ao Rio de Janeiro. O "imprudente" Adílio jaz sanguinolento na linha do trem. Alvoroço, correria. O trem para. Tem morto na linha. Um homem vestido de laranja acena freneticamente uma bandeirola. O que fazer nessa hora? O corpo ensaguentado é um lembrete triste e trágico do que irá acontecer com todos. Não necessariamente morreremos atropelados pelo trem de ferro mas com certeza o trem da vida um dia irá cobrar seu tributo.

Mas o que o poeta tem a nos dizer daquele jeito antigo de se lidar com a morte?

"Um no entanto se descobriu num gesto longo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta". 2

Teria o poeta razão? Seria a vida pura agitação sem finalidade alguma? Teria a morte o poder de um pugilista a socar nosso estômago o tempo todo? Ah alma que anseia por liberdade deixando a matéria lúgubre para trás. Enfim, mesmo que a maioria esteja entretida com o sabor do café e as manchetes dos jornais, não há como deixar de ter uma certa náusea que afirma em meio ao desconforto o desejo de produzir sentido à vida, essa traidora que nos mostra a alegria de existir e nos abandona sem pedir licença.

O trem está parado. Milhares de seres humanos cheirando a intenso suor querem chegar em casa. Desejam algum aconchego e conforto depois de um dia longo onde movimentaram as engrenagens enriquecendo uns poucos com sua pobreza coletiva. O corpo morto atrapalha o tempo. Não será saudado. Nem esquife tem. Está lá diante de nós despudorado com todas as suas chagas. Para tudo fluir em direção a normalidade era necessário que Adílio fosse atropelado novamente. Afinal, quem irá tocar no morto? Quem manchará suas mãos com sangue? Quem terá que sentir o odor da morte, essa mistura agridoce de sangue, poeira e secreções imundas? O tráfego então é liberado e o que restava da forma humana de Adílio se liquefaz nas rodas de aço agora avermelhadas.

Não temos mais tempo para os mortos. Eles devem ser esquecidos muito rapidamente. Em nome da eficiência do fluxo urbano, vale agora a destruição completa de tudo que resta de humano. Nas estações seguintes, pessoas alheias descem e sobem. Saberão no dia seguinte o que aconteceu e parece que a maioria delas apoiará as razões dos homens disfarçados em máquinas que possibilitaram de forma fria e direta que todos pudessem chegar em casa para a refeição requentada e quem sabe um pouco de sexo ao cair da noite.

Adílio morreu pelo menos três vezes. Na primeira, um erro de cálculo esmigalhou seu corpo. Na segunda vez mataram o que lhe restava de humano transformando em monturo o seu cadáver. Na terceira vez sua alma foi imolada junto com a dignidade de toda uma sociedade que se exaspera com a morte e não entende que é necessário um tempo para recebe-la e contempla-la com olhar fixo em seus olhos. Agora está chancelado. Todos podem morrer na contramão, mas diferente do operário de Chico Buarque em “Construção”, a morte não irá mais atrapalhar o tráfego.

1- Trecho do poema “Momento num Café” de Manuel Bandeira.
2- Idem.