Moralidade, corrupção e operação “Lava Jato”.

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A falação não cessa nem um único minuto: Nos telejornais, programas de rádio, páginas de jornal, conversas nas redes sociais, nas praças, restaurantes, nas mesas do almoço familiar de domingo… Só se fala em corrupção, impunidade e falta de moralidade.  O caso é que ninguém tem coragem de assumir a falência do sistema moral que sustenta a frágil coesão social que parece estar a se dissolver. A moralidade pode ser muito importante. Mas ela responde a um conjunto de significados que procuram justificar uma dada ordem racional do mundo.

Por isso, com o passar do tempo a moral parece mudar, como mudam os hábitos de vestir-se. O que era moralmente errado em 1930 nos EUA e o que é moralmente errado hoje mudou. Podemos dizer que se não mudou para todos, certamente mudou para muitos. E nesse grupo, os muitos que adotaram novos padrões morais, isso ocorreu numa grande variedade de modalidades de moralidade. A diversidade e a tolerância parecem fundamentar a ética com mais eficácia do que a tradicional “verdade” única.

Além disso, nos EUA, parte da corrupção política e econômica ao invés de ser erradicada, foi simplesmente exportada. Dessa forma é que a supremacia militar norte-americana destrói cidades no Iraque. E as empreiteiras se beneficiam com obras de reconstrução das mesmas cidades. Por outro lado, a arrecadação de dinheiro privado para o financiamento de campanhas eleitorais é simplesmente institucionalizada. Ninguém pode ser preso por triangular os interesses privados e de governo nos EUA porque eles se confundem de forma legalizada e com aparente apoio, ou mera indiferença, da população.

No Brasil, muitos tem alegado que o PT estaria degenerando-se de referência ético moral, em mais um elemento da paisagem tradicional da imoralidade brasileira. Não se dão conta de que essa constatação traz embutida o pressuposto de que teríamos uma “natureza” corrupta e imoral. Afinal, nessa constatação o PT não perde o posto de liderança moral. Ele desce, retorna, para o patamar comum. O PT "caiu na vala comum", esse é o mote repetido incansavelmente. Ou seja, caiu no estado de coisas que acreditamos, embora sem expressar claramente, que é o patamar comum de toda a atividade política.

Isso implica em aceitarmos que a ausência de caráter seria a essência de nosso caráter. Uma tese do início do século passado que é uma afirmação que pode ter duas interpretações: Uma que depõe contra o nosso valor enquanto brasileiros. E outra que depõe contra o valor de conceitos como caráter e integridade. É provável que noções morais, como integridade e caráter, não tenham mesmo nenhum valor quando o desafio é a produção de sentido.

Partidos são a expressão de parcelas da nossa sociedade. Se neles os homens traem seus discursos e seus princípios, isso depõe contra nós que os elegemos ou contra o sistema democrático. Talvez contra ambos. O certo é que não deve ser um efeito sem causa. A corrupção emerge de uma combinação das qualidades e defeitos dos mecanismos da democracia e da habilidade do eleitorado. Ou, talvez tenhamos que ser capazes de exercitar a coragem de abandonar o projeto de uma sociedade moralmente unificada.

Talvez esse projeto seja uma miragem. Uma tal sociedade só pode ser imaginada por que a sua plena realização é uma espécie de morte da busca. Um estado que anima a existência e, quando realizado, esvazia a vida de seu sentido.

O paradoxo, nesse ponto, reside no fato de que para a maioria das pessoas isso não parece fazer sentido. Quase todos nós aspiramos a melhor imagem moral possível. Buscamos, quase todos nós, um saldo positivo que supere o conjunto de atos imorais que nos é inviável evitar por completo. Desejamos a dignidade humana e acreditamos que só a moralidade e a ética podem nos dar esse merecimento.

A questão é refletirmos se os méritos morais são do mesmo gênero que define o vencedor de uma corrida. O mais hábil no esporte é, adequadamente, o único com a dignidade de vencedor. Será possível que toda medida do merecimento só tenha valor singular? Seria o mérito, no sentido de dignidade ou dignificação, uma medida que só se aplica a um único caso, o do vencedor? Essa pueril constatação pode parecer inconsequente. Mas será que a excelência moral que tanto veneramos, na prática não se resume a excelência do corredor mais rápido? Ou seja, um critério que só tem um valor ocasional e contingente. Se assim for, não pode haver um campeão da ética e da moral. Isso só existe em cada contexto e de acordo com as peculiaridades em jogo.

A questão, sempre sem resposta é se em algum momento seremos capazes de conceber a tal dignidade humana como um princípio universal do qual ninguém possa ser excluído e não defina nenhum mérito específico. Talvez a dignidade humana só possa ter sentido se for uma condição na qual estariam acolhidos tanto os criminosos quanto os inocentes, tanto os loucos quanto os “normais”, tanto pobres quanto ricos, crentes e ateus, feios e belos, homens e mulheres e assim por diante.

Pode ser mais producente reconhecer que quando o sentido de nossa identidade e nossa subsistência material são ameaçadas, temos a experiência de lançar mão de qualquer recurso eficiente. Se esse estado de ameaça real e simbólica é a regra, então toda a moralidade constitui uma espécie de miragem, ainda que indispensável. A moral não é real. No entanto, é incontornável, uma ilusão que sacia nossa fome de sentido.

Pessoalmente, acredito que seria mais salutar desconfiarmos da própria moralidade. Ela é muito presente em nossos discursos, opiniões e julgamentos – especialmente sobre os atos alheios. Mas é uma personagem solenemente ausente do motor desejante que dispara nossas ações. Sei que essa linha de pensamento é inquietante e refratária a toda a tradição ocidental.

Algo parecido com esse modo de pensar persiste em algumas formas do pensamento oriental. Também em alguns dos filósofos pré-socráticos, nos textos de Hume, Schopenhauer e Nietsche, entre outros. A modernidade está saturada dessa suspeita em relação ao verdadeiro, ao belo e ao justo. Sabemos que a moral tem limites muito claros. A questão é o que colocar em seu lugar. Que moral pode substituir a moral que conhecemos? 

Como podemos inferir, o fenômeno da moralidade e da corrupção não é tão simples, caros leitores. O que dizemos da moralidade que oprime os usuários de drogas, moradores de rua e tantos outros grupos sociais deve ter alcance universal. Se concordamos que há algo errado com a moral burguesa esse algo não pode estar errado em relação ao presidiário do varejo do tráfico e correto em relação a Paulo Maluf, Collor de Melo, FHC, Lula ou José Dirceu. Essa ambiguidade em torno da moralidade burguesa tem me parecido uma evidência de que a moralidade e a justiça são mesmo a mera racionalização de nosso abuso contra o outro.

Eu tenho obrigações legais que se configuram como parte de um conjunto de imperativos éticos que resumem a noção do grau de responsabilidade, culpa inocência, inimputabilidade e justiça. No entanto, essas interdições não se aplicam as empresas e algumas instituições. Habilidades que requerem conduta eticamente condenáveis são pré-requisitos para ocupar cargos de comando ou funções em empresas e nas forças de segurança, compostas por mercenários por exemplo.

Muda o contexto e muda o que é certo. Nosso julgamento sobre a corrupção política está a serviço de um interesse coletivo e a um desejo singular específico. Simplesmente não podemos ter a impressão de que José Dirceu seja mais honesto ou mais corrupto que Aécio Neves. Só nos resta acreditar em uma ou outra opção, ou mesmo crer simultaneamente, na inocência ou na culpa de ambos. Num caso há investigação e condenação e no outro, apenas suspeitas. O fato é que a impressão de que o sol está nascendo não exige a crença, como ensinou Hume. De modo que tudo mais é objeto de crença. E crenças são necessidades que não podem passar sem seus interesses mais ou menos explícitos.