DESVER O MUNDO, PERTURBAR OS SENTIDOS: como relatar acontecimentos feitos e enfeitiçados?
Os negros da Costa Ocidental da África, e mesmo os do
interior das terras até a Núbia, região limítrofe do Egito,
têm por objeto de adoração algumas divindades que os europeus
chamam de fetiches, termo forjado por nossos comerciantes
do Senegal, sobre a palavra portuguesa Fetisso (sic), isto é,
coisa encantada, divina ou que pronuncia oráculos; da raiz latina Fatum,
Fanum, Fari.
Brosses, Charles de. Du culte des dieux fétiches (1760) apud
Bruno Latour, Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches (2002)
A epígrafe desse texto retoma um interessante debate ocidental que permeia uma parte das discussões das ciências sociais. Como descrever e relatar acontecimentos que parecem tão estranhos e bizarros?
De Brosses ficou perplexo quando se deparou com o sistema religioso africano e a veneração dos locais a objetos sem nenhum tipo de refinamento 'estético' – segundo o seu olhar -, mas com muito poder religioso e acreditou estar vendo uma idolatria de divindades que se apresentavam como fetiches. "Eles crêem serem deuses aquilo que eles próprios criaram". Ou seja, objetos fetiches porque objetos de Fetissos. Criou-se aí o conceito do fetichismo, que retomado por Marx, na obra O Capital, gerou o mesmo estranhamento para o autor: como pode a mercadoria, produzido pelos homens, ter poder maior do que o seu criador, o trabalhador?
Não quero adentrar em nuances, mas o que precisa ser pautado é essa constante no pensamento ocidental, olhamos com surpresa quando aquilo que criamos parece nos tomar de assalto.
Quero então pensar junto ao modo como Bruno Latour entra nessa discussão ao propor o termo fe(i)tiche – do que é fato e feitiço, ao mesmo tempo. "O fe(i)tiche pode ser definido, portanto, como a sabedoria do passe, como aquilo que permite a passagem da fabricação à realidade; como aquilo que oferece autonomia que não possuímos a seres que não a possuem tampouco, mas que, por isso mesmo, acabam por nos concedê-la. O fe(i)tiche é o que faz-fazer, o que faz-falar". (:69).
E é com esse sentimento de espanto, de um organizador que se vê enfeitiçado pelo evento que ele mesmo ajudou a produzir, que quero fazer esse relato.
Em sua IV edição o Seminário Internacional A Educação Medicalizada: Desver o Mundo, Perturbar os Sentidos apostou na coletividade como pedra de toque. Não na produção de coletivos como somatória de iguais, mas como em uma composição de diferentes vozes que precisavam ressoar umas nas outras para conseguir produzir diferença. E é na potência do encontro desses diversos atores que o que poderia ser a simples somatória dos mais de mil participantes toma um caráter qualitativo e indescritível.
Cada qual, com certeza, vai relatar o evento com um olhar interessado e afetado, ou ainda, nos termos da nossa proposta, um olhar desvisto, desnaturalizado. E é por isso que todos os vídeos podem ser acessados aqui.
Antes, entretanto, é preciso sublinhar os apontamentos enviados por Marilena de Souza Patto e lidos na abertura do Seminário, a teoria da carência cultural, desenvolvida por um think-tank de pesquisadores de notório saber nos Estados Unidos na década de 1970, é uma das precursoras de teorias que criminalizam, medicalizam e estigmatizam as diferenças, sociais, raciais ou econômicas.
Conferência de Abertura do Primeiro Dia
Mesa Romper práticas medicalizantes: um desafio para educação
Esse é um chamado que precisa ser respondido, o que uniu os participantes do seminário não foi o afeto da companhia e do encontro, mas a inquietude de propor e produzir intervenções no mundo. Como 'acolher' sem hierarquizar, como intervir sem impor, ou ainda, como superar a lógica do 'ou' e propor novas formas de estar e deixar estar no mundo?
Abordagens críticas da infância: olhares da psiquiatria, da fonoaudiologia e da educação
E a aposta do seminário foi na desconstrução de certos fe(i)tiches, ou melhor, foi na composição concomitante de diferentes criadores e criaturas para que pudéssemos refazer as possíveis conexões e re-enfeitiçarmos o mundo..
Afinal, quem tem medo do fármaco?
Quem tem medo da droga ilegal?
Quem tem medo do diagnóstico?
Quem tem medo da mídia?
É preciso ir além nas discussões e acusações e propor formas de agir e formas de questionar.
Mas se é o fe(i)tiche aquilo que faz-fazer e faz-falar deixo aqui uma série de produções dos participantes que externalizaram seus momentos no encontro em forma de poesia e vídeo. A potência do encontro é quando ele faz-fazer e faz-falar. E é por isso que a medicalização é tão nefasta, porque silencia, determina e impõe. Contra a lógica medicalização que quer uma única resposta, propomos as múltiplas vozes.
Leitura coletiva do poema o Menino do Mato de Manoel de Barros
Documentário “DESVENDO O MUNDO” – UM DOCUMENTÁRIO SOBRE O IV SEMINÁRIO INTERNACIONAL “A EDUCAÇÃO MEDICALIZADA”
Desenho de Alex Frechette realizados durante o seminário
Desver encontros e desencontros
poema de Elaine Perez
Quantos encontros!
Alguns desencontros!
Movimentos que abriram portas.
Escancararam janelas.
Uniram pessoas com o desejo de desmedicalizar.
Lá das Terras do Tio Sam o esperado não apareceu.
Quem desejava ser visto não se mostrou.
O movimento de desver é convite sem tapete vermelho.
É entrada pelos fundos, fumaça de fogão a lenha que chama para a roda.
É entrada pelos lados, hospitalidade sem impor condições.
Não tem trono, tem aromas, calor, caldo de culturas.
O que nos perturba no encontro é sentir o impulso do acontecimento.
Sentidos provocados a provocar.
Visão de vôo nas nuvens.
Som de ondas dançantes.
Sabores de beijos que abraçam.
Toque de olhares que agradecem.
Perfume de roseiras que contemplam o anúncio da primavera.
Rosa que exala palavras penetrantes.
Mansidão na voz que nos tocam com a força da caminhada.
Perturbar os sentidos é se remexer na cadeira frente às diferentes vozes que testemunharam o valor da dignidade humana.
É sim se embriagar de lucidez.
E despertar ao compromisso da vida .
Vida aberta a novos e desafiantes encontros.
O movimento continua.
O desafio é dos grandes.
Prosa para tocar.
Verso para caminhar.
Sonho para viver.
Cotidiano para manifestar.
Vídeo intervenção de Helena Monteiro e Renato Souza
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Êta povo criativo! A profusão de invenções nos dá a medida da intensidade do que se passou. E, não à toa, vocês estavam justamente no lugar onde Brasil e África se misturam do modo mais belo.