Do direito à comercialização do bem público

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           A pouco tempo vi o compartilhamento de uma notícia em um grupo LGBT aqui no Facebook sobre a comercialização de testes rápidos para detecção do HIV na França [1]. Junto com o compartilhamento estava escrita a seguinte frase:

           "Lembrando que aqui no Brasil o teste rápido é gratuito. Breve estará também sendo comercializada nas farmácias do país."

           O Brasil é um dos poucos países do mundo que tem um sistema de saúde gratuito (sem custos por parte do usuário) e universal (qualquer cidadão de qualquer país pode usá-lo). Este sistema, o SUS, produto da mobilização de diversos setores da sociedade em tempos sombrios de Ditadura Civil-Militar, está garantido na Constituição de 1988, no mesmo capítulo que se inicia dizendo que, no Brasil, saúde é um direito [2,3].
           Já comentei bastante em sala de aula e em conversas com amigos que essa noção de direito à saúde não é integralmente consolidada nos brasileiros, já que não se cessa o número de instituições que repetem e nos ensinam que nossa atual situação como brasileiro é produto do esforço individual, onde os serviços sociais são interpretados como uma obrigação do Estado frente aos impostos pagos por cada cidadão, cabendo aqui o texto de Leonardo Sakamoto sobre a constituição do brasileiro não como cidadão, mas como consumidor [4]. Além da reforma sanitária, nome dado ao movimento que congregava diversos setores da sociedade, como citei no parágrafo anterior, não ter sido um movimento da grande massa dos trabalhadores brasileiros [5]. Portando, fica difícil integrar a ideia de que algo é meu direito sendo que não fez parte da minha história.
           Deste modo, cabe muito bem entender que tudo bem o teste rápido para detecção de HIV estar disponível no sistema público, mas melhor ainda seria se eu pudesse comprá-lo. Assim, constituindo uma relação onde o mercado fosse o solo fértil para minha verdadeira proteção, entendendo a proteção como algo apenas sujeito ao individuo, com ações e resultados com apenas um culpado: o eu. No posto de saúde eu sou só mais um, submetido ao contato de outras pessoas e julgamentos que não fazem parte da minha existência como ser e que não passam a mim nada mais do que um protocolo padronizado. Na farmácia, eu compro, eu testo, eu sei o resultado e eu sei as consequências, eu não preciso de uma interação para além do funcionário-comprador. Faz super sentido querer que o bem público seja comercializado, pois assim, ele se torna parte de mim e de minha própria responsabilidade.
           Rapidamente após o compartilhamento houve o seguinte comentário no post:

           "Já vieram perguntar se tinha na drogaria onde sou RT. Mercado tem"

           Comentário este que exemplifica a força social que o mercado tem frente ao bem público.
           Diante disso, nos encontramos mais uma vez no embate entre o público e o privado. E submetidos mais do que na escala macroeconômica financeira, mas também a relações sociais historicamente construídas entre eu e o outro.
           Nesse disputa, não vale a pena só demonizar o mercado, ou no caso, a farmácia (e isso não quer dizer que a existência dele não é um problema que necessita de crítica, regulação e luta), é necessário entender como se dão os processos de inserção dos cidadãos nos serviços do SUS a fim de disputá-los para além do uso, mas para uma noção de direitos e coletividade. Além do mais, não cabe e nem faz bem a um bem público descartar a individualidade e a história das pessoas, mesmo com toda a problematização teórica em cima desses termos.
            A realização do sexo sem proteção e do uso de drogas sem proteção, tem características históricas gigantescas e complexas e o jeito que elas se expressam num diálogo ou na performance corporal na procura de um recurso tecnológico difere para cada um. Cabe a nós, profissionais da saúde e militantes do SUS, entender como se dão essas diversas conexões que faz uma pessoa entender a necessidade do teste rápido e disputá-la para o SUS.
          Cabe mais ainda entender que nessas conexões a formação acrítica de profissionais de saúde e a existência de um Estado burguês submetido a lógico da comercialização dos direitos são um dos principais entraves para consolidação de direitos e do bem comum.