O SUS e os poderes independentes da república: Obstáculos a universalidade e a igualdade.

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O problema do acesso universal ao Sistema Único de Saúde (SUS) permite uma análise de como ocorre a reprodução das estruturas de desigualdade na sociedade brasileira. É interessante observamos como acontece a articulação entre o caráter patrimonialista de nosso Estado e os interesses privados, na corrosão dos princípios do SUS.

O surgimento dos mercados é anterior ao advento do capitalismo. A existência de reinos, cidades estado e impérios sempre esteve relacionada ao equilíbrio do mercado das mais variadas necessidades humanas. Regular mercados, então, tem sido uma das funções mais importantes de qualquer tipo de governo. E, essa regulação se faz tendo em conta quais interesses se deseja preservar e quais interesses é necessário contrariar. Em geral, o equilíbrio dos interesses de governos e elites é mantido com mais ou menos instabilidade. Os ciclos de poder se mantém de acordo com as frequências dessas instabilidades.

O princípio constitucional da universalidade de acesso aos SUS é um típico problema de regulação do mercado de trabalho através da intervenção do Estado. Onde os profissionais da saúde encontrarem a melhor remuneração, a melhor oferta de atenção à saúde tenderá a ser, igualmente, encontrada. As curvas estatísticas dos dois fenômenos, qualidade na atenção e valor da remuneração, serão (via de regra) semelhantes.

Na prática, o mercado de trabalho em saúde assemelha-se a um mosaico em torno da acomodação de interesses corporativos, político-fisiológicos e públicos. O SUS tem um pouco disso tudo. É desde local de excelência, como em transplantes, tratamento de HIV, e algumas das políticas de atenção primária, até a insuficiência crônica de profissionais, serviços e infraestrutura.

O problema reside na disparidade entre os volumes de investimento e os princípios do sistema, (universalidade no acesso e integralidade na atenção). Paradoxalmente, na questão do financiamento do SUS, vigora uma simples e brutal iniquidade, o oposto do terceiro princípio doutrinário do SUS.

Em 1990, quando eu era atendente de enfermagem, na cidade de Cruz Alta, me custava entender porque os salários dos grandes hospitais da capital podiam ser até quatro vezes maiores que o meu. Não podia deixar de concluir que administrar medicamentos aos usuários do Sistema Único de Saúde por valores diferentes, feria o princípio da igualdade entre os usuários do SUS. Remuneração diferente para o mesmo cuidado, me parecia o mais frontal ataque aos princípios do SUS. No entanto, o fato era que meus próprios colegas, mesmo os sindicalistas, pareciam não se importar muito com isso. Alguns até mesmo justificavam de alguma forma esse tipo de desigualdade.

Diferenças na remuneração e a precarização do trabalho em saúde, têm relação direta com o grau de universalidade do tipo de atenção à saúde que prestamos. Onde o SUS é bom para ricos e pobres, onde o SUS está aliado a formação profissional de médicos, que irão prover atenção às nossas classes mais abastadas, teremos os melhores salários. Nos setores onde o SUS atenda as camadas mais pobres e excluídas (ainda que seja referência mundial em qualidade, como na atenção primária em saúde) os salários serão menores e as condições de trabalho precarizadas. Essa é a exceção mais evidente a regra de maior salário, tendência a maior qualidade. Mas também é verdade que nesse setor o Estado detém uma espécie de monopólio, visto que a atenção primária não rebe investimentos significativos da iniciativa privada.

Em Porto Alegre, meu campo de experiência no trabalho em saúde durante mais de duas décadas, existe o serviço de atenção a urgência e emergência do Hospital de Pronto Socorro (HPS), do Hospital Cristo Redentor (HCR) e do SAMU. Nesses serviços são pagos os melhores salários do mercado de atenção em urgência e emergência. O seu público alvo é, portanto, universal. Se o governador, o prefeito, um mendigo ou um comunicador famoso, sofrerem um acidente grave, ou atentado, o primeiro serviço a ser chamado será o SAMU. E o usuário será deslocado para o HPS ou HCR, conforme o local da cidade onde estiver no momento da ocorrência.

Somente depois que os mais capacitados profissionais na área de urgência e emergência garantirem sua sobrevivência, os usuários citados acima serão encaminhados para os leitos hospitalares de acordo com a camada social que ocupam. Os que possuírem recursos, serão transferidas para o setor de convênios de grandes hospitais privados (todos filantrópicos) e o mendigo para uma enfermaria em leito pago pelo SUS.

O caminho para a universalização plena do SUS é o já experimentado em outros países. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) na Inglaterra, antes dos governos de Margaret Thatcher, por exemplo. Mesmo hoje, em plena crise europeia, o SNS ainda é modelo de financiamento para o SUS. O Estado, nesse exemplo, lidera o mercado de trabalho em saúde. Atrai com isso a excelência em produção de conhecimento e em práticas de atenção e cuidado. Logo, todos, universalmente, irão buscar seus serviços. Numa economia de mercado a universalidade só pode ser atingida assim. Pagando os maiores salários do mercado.

Sabemos de profissionais que foram fazer especialização na Inglaterra e aceitaram o convite para ficar lá, em razão de se poder ganhar numa única instituição de saúde, com dedicação exclusiva, o mesmo salário que ganhariam no Brasil trabalhando em duas ou três instituições. Suas escolhas tiveram relação com a implantação do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e o ponto eletrônico nos serviços de saúde.

Em Porto Alegre o SUS oferece a melhor remuneração para o trabalho em saúde no Hospital de Clínicas (HCPA), no Grupo Hospitalar Conceição (GHC), no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV), no HPS e nos Pronto Atendimentos da Prefeitura. Ainda assim, nesses serviços há profissionais terceirizados com contratos precarizados de trabalho. Muitos dos trabalhadores da saúde, eu inclusive, trabalham em mais de uma instituição, geralmente na saúde ou na educação.

O sistema, nesse regime de desigualdade de remuneração interna, não pode ser universal. Imediatamente, o imaginário cultural percebe que os serviços precarizados constituem guetos de atendimento destinado aos pobres. Essa forma de entender a universalidade seletiva também pode se somar as demais explicações culturais que mantém o uso do SUS centrado no Hospital. Se os trabalhadores do “postinho” são sub-remunerados, e estão nos territórios de exclusão, a conclusão é óbvia.

De forma análoga, é comum que moradores de rua resistam a internação em determinados hospitais filantrópicos mais afastados do centro da cidade (menos equipados que o GHC e HCPA). Eles respeitam a evidência de que a maioria dos moradores de rua acabam morrendo nesses pequenos hospitais. Enquanto o HCPA, por exemplo, insiste em manter a dupla porta: – Uma para o SUS e outra para convênios, mesmo com a insistência do Ministério Público de que o hospital destine 100% de sua capacidade para a atenção ao SUS.

Há, enfim, muita distorção na forma como o orçamento da saúde figura dentro do conjunto de fatias de reservas de interesse que compõe o mapa de prioridades a que os governos têm de se submeter. Mas é surreal o fato de que o MP e Judiciário exijam uma atenção à saúde que o Estado não pode garantir, exatamente pela forma como os recursos são divididos entre os ministérios e órgãos independentes dos poderes da república.

Ressalvando as obrigações com o mercado financeiro internacional que oneram os recursos da união, pensemos na forma como são repartidos os recursos públicos entre os diversos setores do governo e dos poderes independentes da república. Podemos olhar atentamente para o orçamento do judiciário com suas isonomias, seus efeito-cascatas, farra dos auxílios moradia, carreiras nacionais e suntuosas instalações. É desse tipo de arsenal de recursos que o SUS carece para que sejam executados mais eficientemente seus princípios constitucionais.

A remuneração pelo trabalho em saúde poderia ser nacional, como são os subsídios dos magistrados. Assim, os profissionais da higienização, nutrição ou medicina do SUS iriam perceber os mesmos salários em todos os serviços, cidades e estados do Brasil. Possibilitando que a universalidade e a integralidade, na atenção à saúde, fossem adequadamente providas. Afinal a centralização da arrecadação dos impostos nos cofres da união é legítima, justamente para atender a essa finalidade: – A garantia dos preceitos constitucionais em todo o território nacional.

O Tribunal Superior do Trabalho (STF) poderia julgar a pertinência de se estabelecer a isonomia salarial para os trabalhadores do SUS. Bastaria tomar como referência os salários pagos em nossas mais respeitadas instituições. O inicial em saúde para o nível médio de ensino ficaria em torno de 1000 dólares, quatro mil reais hoje. Um belo salário mínimo para qualquer profissional de nível médio do serviço público brasileiro, seja do judiciário ou da saúde. O fato é que há pelo menos dois fatores impedindo que sigamos por esse curso:

– A pressão internacional para que os gastos com o Estado de bem-estar social não reduzam nossa capacidade de repassar recursos aos países do primeiro mundo;

– E o fato de que esse aumento do investimento em saúde afetaria muitos privilégios ilegítimos e insustentáveis, como o dos poderes independentes da república, notadamente legislativo, judiciário e ministério público.

Uma medida como essa poderia multiplicar por três ou quatro vezes o atual orçamento da saúde. Uma decisão que parece não poder atingir o consenso, pois em vez de manter privilégios corporativos, estaria universalizando o acesso a um direito constitucional. O problema é que em termos históricos, a fatura das promessas da constituição cidadão de 1988 será, mais cedo ou mais tarde, apresentada.

Talvez nossos legisladores e juristas possam se antecipar as consequências e, diligentemente, agirem na direção da redução das desigualdades sociais e na inclusão da maioria de nossa população no padrão médio de vida que é ambiental e economicamente sustentável…