Fabricação da verdade e disputas de narrativas sobre o SUS na imprensa brasileira
Como os interesses privados de empresas multinacionais e os interesses políticos de certos setores da sociedade direcionam a criação de pautas nos noticiários, e como, pelos mesmos interesses, ocultam outras pautas, num processo de fabricação do consentimento, ou fabricação da verdade (Noam Chomsky)? Nesse texto de autoria do nosso companheiro Ricardo Teixeira, publicado na Carta Maior em 16.10.2015, é possível ver como funciona esse esquema de formação e dominação da opinião pública através das notícias (e das não notícias) e da publicidade indireta contra o SUS no Brasil.
SUS faz mais e melhor com menos recursos que a saúde privada
Nova pesquisa DataFolha (publicada na Folha de São Paulo do dia 13 deste mês) indica mais uma vez, a péssima avaliação da saúde no país. Mas há aspectos importantes dessa pesquisa que, ao apresentar e analisar os dados, o jornal Folha de São Paulo faz contorcionismos para ocultar. Por exemplo, que a saúde privada é pior avaliada que o SUS. Vejamos.
Lendo os dados divulgados notamos que seis em cada dez brasileiros (ou seja, 60%), acham a saúde péssima. Quando só se avalia apenas o SUS, o numero cai para 54% de péssimo.
Quando se avalia a "saúde em geral”, 24% dá nota zero; quando se avalia apenas o SUS, 18% dá nota zero.
A matéria evita comentar (mas pode ser lido nos dados que disponibiliza) que 2% dá nota 10 para a "saúde em geral" e 3% dá nota 10 quando se avalia só o SUS.
E a diferença mais notável: 11% dá nota maior que 7 para a "saúde em geral" e 18% dá nota maior que 7 para o SUS.
Conclusão óbvia, cuidadosamente evitada pela Folha na análise dos resultados: a saúde privada puxa significativamente a avaliação da "saúde em geral" para baixo!
Mas, excetuando o esclarecimento no primeiro parágrafo de que o levantamento envolve a rede pública e privada, no resto da matéria a expressão "saúde privada" nem é mencionada. A comparação é sempre entre a "saúde em geral" e o SUS. Afinal, o objetivo é sempre o mesmo: associar a "péssima avaliação da saúde" ao nome SUS e evitar, a todo custo, de associá-la ao setor privado, mesmo quando é ele que mais contribui para a má avaliação da saúde no país.
Se fosse um jornalismo sério e honesto, lembraria ainda o quanto o setor privado gasta para prestar um mal atendimento a 25% da população (parcela aproximada da população brasileira que tem plano de saúde privado e que gasta 52,5% de todos os recursos gastos com saúde no país, segundo dados recentes da Organização Mundial de Saúde; ou ainda, cerca de R$ 2.200 per capita) e o quanto o setor público tem de recursos para dar atendimento a 83% da população (percentual que referiu ter utilizado o SUS segundo dados deste levantamento do DataFolha) e garantir a saúde coletiva através de medidas que beneficiam indistintamente toda a população (vacinas, vigilância epidemiológica etc.) e, mesmo assim, conseguir ser melhor avaliado (47,5% do total de recursos gastos com saúde no país ou aproximadamente R$ 1.000 per capita).
Outro fato que se pode deduzir dos dados, e que também não é destacado pela Folha, é que se 25% têm plano de saúde e 83% utilizaram o SUS, então o SUS acaba sendo utilizado por muita gente que tem plano de saúde. E aí, se fosse um jornalismo sério e honesto, ela também faria questão de destacar o conhecido calote que os planos de saúde aplicam no SUS, referente aos atendimentos de urgência e emergência, ao tratamento de câncer, transplantes, hemodiálise, entre outros, que os planos negam cobertura e o SUS acaba assumindo (apenas 25% dos valores devidos são ressarcidos ao Sistema Único de Saúde, dessa parte 20% se perde com recursos da justiça, tramitação, prescrição etc.).
Explicitar esses dados reais daria ainda maior dramaticidade à melhor avaliação do SUS comparada à avaliação geral da saúde no país. E nesse caso, a chamada mais justa para matéria seria: “SUS faz mais e melhor com menos recursos que a saúde privada”.
Mas, aparentemente, este jornalismo não é sério nem honesto. Ele não pode ser quando tem compromissos claros com os setores que fazem da saúde um lucrativo ramo de negócios e não um bem público e um direito universal.
Ricardo Rodrigues Teixeira é médico e professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP
Fonte: Carta Maior
Por Mariella
Trazer o tema pra discussão aqui é mesmo muito bom!
É um dos meus temas preferidos de pesquisa, e um dos principais temas de incômodo no meu monitoramento diário da imprensa, analisar como a mídia constrói a imagem do SUS, perceber as nuances, tendências e traçar perspectivas. Infelizmente são raros os veículos que dão espaço para pautas positivas, pelo próprio sistema de financiamento dos jornais, cujos principais patrocinadores são planos de saúde. No rio, a Unimed divulga suas peças todos os dias em O Globo, um dos jornais com a publicidade mais cara do Brasil.
Essa engrenagem dificilmente se romperá, enquanto os jornais forem financiados pelos planos e também pelo governo ( que tem uma postura passiva diante dos abusos publicados sobre o SUS, apenas com a versão do lado ruim) portanto nós, como sanitaristas, usuários, trabalhadores, gestores de instituições públicas de saúde devemos fazer a nossa parte e cavar espaços com argumentos inteligentes, como RT bem o fez no face… tão bem que extravasou os limites da rede social virtual.
Tem um texto bem interessante específico sobre a Folha, pra quem se interessar mais sobre como o SUS foi tratado pelo principal impresso pago do país, em tiragem,
e também há um texto de uma pesquisadora do Laboratório onde estou trabalhando, ( Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde- Fiocruz) a Izamara Bastos, que analisou o Globo, publicado recentemente no livro Saúde e Jornalismo. Fica a dica.
Vamos cobrar, vamos nos capacitar ( tem inscrição aberta pra um curso gratuito de Comunicação em Saúde que vai ser em Brasília e bem bom) , vamos colocar a boca no trombone ( e os argumentos onde for possível, a começar nas redes sociais virtuais)