O SUS é uma caridade para pobres, ou um direito dos cidadãos brasileiros?
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Fornecida a bomba de insulina e respectivos insumos pela Secretaria da Saúde, o processo judicial teve prosseguimento. A despeito da manifestação do Ministério Público favorável à concessão definitiva do tratamento com a bomba, o Juiz deu uma sentença negativa, com fundamento no bairro onde residiam Érica e sua advogada, e na instituição privada de ensino superior onde estudava a paciente.
Partindo da concepção generalizada de que os residentes daqueles bairros são pessoas abastadas, e que estudantes de universidades privadas possuem estabilidade financeira – isto é, pensando que a paciente tinha recursos para custear a bomba, e que por isso não poderia receber o tratamento pelo SUS – além de negar o pedido, o Juiz aplicou uma multa a Érica, afirmando que ela teria usado o processo para conseguir objetivo ilegal (má-fé), e cancelou o fornecimento mensal de insumos. Mesmo ganhando a liminar do Tribunal de Justiça, pela sentença Érica não receberia mais os insumos da bomba.
A sentença baseou-se em ilações sem exame da causa e da pessoa em sua subjetividade. Não havia má-fé, porque certamente Érica não se submeteria ao que vinha se submetendo (recusa de fornecimento completo dos materiais e horas de espera na fila de dispensação de medicamentos) se não precisasse de fato que o Estado lhe fornecesse os insumos.
Os bairros mencionados, embora abriguem em regra pessoas com boas condições financeiras, não refletiam as condições pessoais da paciente e de sua defensora, pois Érica residia em república estudantil, e a advogada trabalhava em sua residência, não em um luxuoso escritório como fantasiava o Juiz. Portanto, eram situações bem distantes da nobreza imaginada pelo julgador. Além disso, a Constituição Federal é a mesma para todos os bairros de qualquer Estado do Brasil.
Quanto ao fato da paciente estudar em universidade privada, apenas comprovava que Érica já arcava com gastos importantes, o que dificultava ainda mais a manutenção do seu tratamento de saúde. Pretenderia o juiz impor-lhe a escolha entre a formação profissional (estudo) e a saúde, sendo que ambos são obrigações constitucionais do Estado?
Certamente que, se obrigada, Érica escolheria cuidar de sua saúde, mas, abandonando sua formação acadêmica (que também não conseguiu obter do Estado gratuitamente em função do número insuficiente de vagas nas universidades públicas), acabaria por diminuir suas chances de manutenção do tratamento de saúde, e ficaria sem estudo e sem saúde.
Ainda que a paciente gozasse de condição econômico-financeira confortável, isso não impediria o recebimento de medicamentos de diabetes pelo SUS, já que o sistema é universal, ou seja, deve atender a todos os cidadãos indistintamente (artigo 7º, inciso I, da Lei nº 8.080/1990, e artigos 1º, inciso I, e 3º, da Lei Estadual Paulista nº 10.782/2001).
Se a lei do SUS dispõe a universalidade do sistema, o Poder Judiciário não pode limitar os direitos nela previstos, salvo em caso de omissão da própria lei, o que não acontece no caso. O SUS foi criado e idealizado com base na universalidade e integralidade, o que significa atendimento não somente à população carente, mas a todo e qualquer cidadão. Portanto, o entendimento da sentença contrariava disposições legais, com pretensão de legislar, atividade que não compete ao Poder Judiciário.
Contestada a decisão através de recurso para análise do próprio Juiz que a proferiu, este limitou-se a indicar que Érica deveria recorrer ao Tribunal de Justiça, mantendo a negativa da ação e a suspensão do fornecimento dos medicamentos de que a paciente dependia para sobreviver.
Reflexões desse post:
– pessoais.
A lei processual brasileira considera litigante de má-fé aquele que apresenta pedido ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso, altera a verdade dos fatos, usa do processo para conseguir objetivo ilegal, opõe resistência injustificada ao andamento do processo, procede de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo, provoca incidentes manifestamente infundados, e/ou interpõe recurso com intuito manifestamente protelatório. Nenhum desses atos praticou a paciente no processo. Por outro lado o Estado, que para protelar o fornecimento dos medicamentos procedeu de modo temerário no cumprimento da liminar e provocou incidente manifestamente infundado, tentando entregar apenas a bomba infusora quando restava claro que a ordem se referia ao equipamento e demais materiais para a sua utilização, nenhuma punição recebeu do Juiz.
– enunciado 212 do livro “A sociedade do espetáculo“, de Guy Debord (página 160).
“A ideologia é a base do pensamento duma sociedade de classes, no curso conflitual da história. Os fatos ideológicos não foram nunca simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, enquanto tais, fatores reais exercendo, por sua vez, uma real ação deformada; na medida em que a materialização da ideologia na forma do espetáculo, que arrasta consigo o êxito concreto da produção econômica autonomizada, se confunde com a realidade social, essa ideologia que pode talhar todo o real segundo o seu modelo”.
Por Emilia Alves de Sousa
Sem dúvida Débora! O SUS, de acodo com o texto constitucional e com a Lei 8.080/90, que dispõe sobre o SUS, a saúde é um direito de todos e dever do Estado viabilizar esse direito, independente de qualquer coisa.
As suas reflexões me remeteram a um acontecimento num debate político eleitoral ocorrido no município de Teresina, há dois pleitos atrás, quando uma candidata questionou um outro candidato que era o prefeito da época, por recorrer ao Programa de Medicamento Excepcional para aquisição de medicamentos para a filha. E ele respondeu-lhe dizendo examente isto, que o SUS é universal, e que todo cidadão tem direito aos serviços ofertados, independente da classe e ou de qualquer outra situação. Simples assim!
Valeu pela publicação Débora!
Bjs!
Emília