Em tempos de obsessão moralista e histeria coletiva na tentativa de justificar a realidade podemos considerar um mito sem o qual não podemos passar:
– A abstração da inocência.
Existem folhas, sedimentos, rochedos, animais, estrelas e formigas.
As idéias que, partindo da aguda sensibilidade que temos aos objetos, nos permitem a antropomorfização e a mitificação das coisas – únicas em sua forma e distintas a cada instante no tempo – são inexistentes que persistem em nossa clausura mental.
O mestre de Fernando Pessoa, surge de dentro dele, para ensinar que para ser plenamente é mais importante saber ver para só então ousar pensar. E com uma boa dose de moderação e humildade.
Eu vi pessoas morrerem. Muitas. É minha profissão. Observei pessoas colherem furacões tão grandes que nem que tivessem vivido séculos e incontáveis vezes teriam merecido a ceara que lhes coube.
Estive com crianças, idosos, homens e mulheres sofrendo com dores e suplícios que nem consigo imaginar. Geralmente morrer era uma bênção. Uma libertação da dor.
Nenhuma dessas pessoas era má. Não matavam, nem estupravam. Eram filhos amados, esposas fiéis, maridos zelosos.
Todos tem o direito de acreditar no que quiserem. Mas o custo da certeza é render-se a ilusão.
Podemos criar pensamentos, idéias, conceitos e desejos sobre mundos que deveriam existir ou como esse mundo se tornará melhor. Por isso a religião é mais que um direito. É uma necessidade.
Pelo excesso de sentido necessário a uma espécie que sabe muito sobre pensar e pouco sobre ver, é que toda religião (ao pregar uma verdade absoluta) acaba por, na prática litúrgica e ritual, reverenciar o mistério.
Não há inocência. Não há culpa. E não há escolha.
Existem as estações do ano, as secas e as chuvas, águas correntes, águas profundas e águas paradas. O animal humano não está em relação de privilégio em relação às florestas e desertos. Não pode existir sem eles. Mas florestas e desertos, montanhas, vermes e insetos existem há mais tempo que os humanos e podem herdar a terra.
Nisso não há mistério. Mas preocupação com o mistério, isso sim, constituí um verdadeiro e singular enigma…
