A posse despojada da humanidade resume-se a sorte, ou ao destino. Somos os efeitos de causas que nos precederam, ou resultado aleatório do acaso.
Se causados, não podemos ser livres. Se não temos o controle, pois somos causados, não podemos ter mérito, nem culpa. O mesmo vale para o acaso, outro nome para causa. Ambos, causa e acaso, são sinônimos de mistério. E o Mistério é o deus dos deuses.
Em nosso caso especifico, civilização judaico-cristã, Deus e liberdade coexistem na noção peculiar de livre escolha. O livre-arbítrio é como o Papai Noel ou o Bicho Papão. Um nome familiar, e menos assustador, para o abismo de mistério que nos enreda.
Esse é o fundamento da religião, da fé, da crença e da esperança: uma aposta diante do desconhecido. Nossa liberdade é ir no fluxo da esperança, da tolerância e do respeito pelo que não entendemos. Ou, se deixar levar pelo desespero arrogante e acreditar cegamente que é possível ter certeza.
Desse delírio, vieram todos os pesadelos que o genocídio, o fascismo e o totalitarismo tornaram real nos séculos recentes e nas atrocidades dos milênios em que nossa incipiente civilização existe.
O fato observável é que não podemos nos alimentar, ter água potável, roupas e abrigos sem a soma de esforços e colaborações coletivas.
Essa obsessão pela propriedade privada é a ilusão de uma espécie onde em cada indivíduo vivem mais bactérias do que existem habitantes em todo o planeta. Sem essas bactérias (que sequer tomam conhecimento de nossos dramas, glórias e pecados) não ocorreria a digestão do alimento que nos mantém vivos.
Ou a dignidade humana pertence a todos, inclusive ladrões e honestos, culpados ou inocentes, ou ela simplesmente não existe.
É uma ilusão sem substância a ideia de que, a margem de todas as nossas diferenças, não existe uma profunda comunhão no destino biológico de nossos corpos.
Comemorar o assassinato de alguém como vi nos comentários ao post de Edgar Pretto no Facebook, é tão deprimente que só pode significar um profundo desprezo pela própria existência. Não apenas a existência como um todo, mas a própria existência pessoal. É uma forma de ressentimento consigo mesmo, manifestada numa forma de negação da vida. Como isso é muito comum dá para entender o que Nietzsche chamou de niilismo ocidental da modernidade.
Quem se ilude achando que o trabalho é o fundamento da propriedade privada, e da identidade, deve lembrar que tudo o que usamos e consumimos nos dias atuais é fruto da inventividade que foi gentilmente legada a humanidade pelas gerações passadas.
Sem o esforço dessas pessoas que não conheciam nem esquerda, nem direita, nem política, nem Estado, a humanidade já teria desaparecido há milhares de anos.
Mais ainda, toda modernidade tecnológica foi nos entregue por uma legião de seres humanos obcecados pela busca do conhecimento e não pela verdade. Implicados em descobrir e não em repetir “dogmas” surrados. Pessoas movidas pela curiosidade e perseverança e não pela certeza e por julgamentos precipitados.
Então, ainda que nos seja difícil imaginar um mundo sem o império do ego, ele consiste em uma ilusão recorrente.
O eu é um efeito de se tentar congelar o continuum de instantes solidários.
Puntiforme, sem extensão, sucessivo e infinito, o dado se dissolve ininterruptamente.
O Eu só existe por que passa. E passando, deve um tributo, por existir, ao intervalo que o faz ser sempre outro, nunca o mesmo, sempre o mesmo.
Sendo devir, é sendo e não sendo que se realiza, que se estabiliza. Não possuí nada porque pertence a tudo.