Entre Grades e Leitos: Dilemas da Classificação de Risco sem Acolhimento
Nos últimos anos temos visto a efervescência de práticas que se dizem de ACCR (Acolhimento com Classificação de Risco), protocolos estão sendo criados, práticas redimensionadas, fluxos ordenados, enfim, as coisas estão melhorando em muitos locais. E, junto a estes processos, vem as modificações de ambiência. Aspectos que antes eram considerados “privilégios” e “luxo” como salas climatizadas para pacientes do SUS ou salas de espera com TVs de plasma vão gradualmente fazendo parte da paisagem.
Mas existem coisas que insistem em permanecer, herança de um passado recente que se presentifica como norma cultural e que nem toda a reforma e nem toda construção absolutamente nova parece poder dar conta. Já nos ensinava o velho Karl Marx que, em muitas circunstâncias, o peso das tradições, inclusive das gerações mortas, oprime o cérebro dos vivos. Volta e meia o tabu da virgindade ou as observações de cunho machista e sexista são “singelos” exemplo do cotidiano que mostram que os fantasmas da idade média ainda povoam nossas ações.
Recentemente presenciei a luta vanguardista de um grupo de trabalhadores de um grande hospital de Urgência/Emergência para implantar o ACCR. Estão tentando seguir a risca o que preconiza os manuais, estão tentando transformar o cotidiano e a subjetividade dos trabalhadores mas esbarram em duas coisas aparentemente simples: na lógica do funcionamento do Estado; na necessidade de se “proteger” dos pacientes.
Explico-me melhor. No bojo dos processos privatistas dos anos 90, estabeleceu-se o consenso da necessidade de terceirizar força de trabalho de atividades consideradas menos relevantes às atividades fim. Assim, em poucos anos, os hospitais foram sendo ocupados por milhares de porteiros, maqueiros, trabalhadores de limpeza etc, oriundos de empresas de terceirização. De saída isso acabava provocando sérios problemas de gestão, pois, se de um lado poder-se-ia constatar racionalidade de recursos (embora essa “racionalidade” pudesse ser interpretada como transferência de recursos públicos para setores privados), por outro lado essa massa de trabalhadores era gerida pelos interesses de suas próprias empresas e não necessariamente pelos interesses de quem contratava essas empresas. No hospital em questão isso coloca um entrave ao acolhimento na medida em que a prestadora de serviços encaminha porteiros e maqueiros sem as qualificações necessárias para lidar com o público. Imaginem o que acontece quando pessoas acostumadas a fazer segurança de casa de shows se transformam em porteiros de hospital? De que forma estão “acolhendo” as pessoas?
Erving Goffman (sociólogo norteamericano) cunhou o termo “Instituição Total”. Muito resumidamente, uma instituição total pode ser caracterizada como espaço que visa controlar a vida dos indivíduos impondo regras e/ou comportamentos que só podem ser decodificados em seu próprio espaço. A Instituição Total substitui todas as formas externas de interação social pelas suas formas internas. Assim, p.ex., as regras que regulam os comportamentos de presidiários numa penitenciária são mais relevantes para a interação destes grupos na cadeia do que as regras que regulam os contatos das pessoas fora da prisão.
Com os hospitais acontece fato muito similar. Ele tem estruturas normativas, regras de conduta, horários, alimentação e formas de se vestir enfim, ações que impactam na vida de todas as pessoas que dele fazem parte, em particular e de forma mais intensa, da vida dos usuários. E algumas senhas na ambiência do hospital expressam com clareza muitas vezes rude o que aquele espaço pensa das pessoas que vem até ele para serem atendidas. Falo das grades que “protegem” os trabalhadores em postos de atendimento, que isolam espaços delimitando objetivamente até onde usuários podem ir ou mesmo trabalhadores considerados “inferiores” na estrutura hierárquica.
Assim, como implantar o acolhimento numa relação ORGÂNICA com a classificação de risco em espaços institucionais onde a subjetividade implora pela presença de grades que “protegem” as pessoas destas bestas feras prontas para agredir e depois chamar o populismo televisivo que irá mostrar o rosto do trabalhador de saúde, ele também vítima da falta de resolutividade da rede?
Do meu singelo ponto de vista, não é possível a implantação de ACCR sem o “A”. O que estamos vendo em muitos lugares são formas de regulação de fluxos , o que por si é algo importante na medida em que, enquanto atuação técnica, pode ser elemento decisivo para salvar vidas mas, ainda assim, não estará atuando na implantação de um princípio fundamental às práticas humanizadas de saúde: o acolhimento!
Trata-se, portanto, de se colocar em análise junto as rodas de trabalhadores que se envolvem com a implantação do ACCR a discussão da subjetividade institucional que ainda necessita de muros e grades, algumas destas inclusive adquirindo uma concretude literal. Como acolher aquilo que me ameaça? Tenho, portanto, de colocar em analise os sentidos que fazem com que muitos trabalhadores vejam nos usuários uma ameaça a sua integridade física e não potentes aliados à construção de um SUS humano e solidário!
Por Luciana Abreu
Erasmo querido,
Maravilhoso texto! Como sempre.
O cuidado às pessoas e ao planeta parece agora ser coisa de quem estuda para. É impressão minha ou não crescemos mais na direção do cuidado a si próprio, ao outro e ao ambiente? Que pena! Do contrário, não precisaríamos agora nos preparar para " aprender e ensinar como cuidar ", seria nato! Seria lógico! Seria…natural. De fato estamos diante de "prestadores de serviço" , ou seja, pessoas, seres humanos que estão sendo programados para desempenhar uma tarefa e parece o cuidado ao outro – usuário, colega .. seja quem for, ser uma tarefa a mais e da qual precisamos ter certificado. É necessário sim refletir sobre a gestão, vínculo e qualificação dos trabalhadores, mas sobretudo, deveremos refletir seriamente sobre como estamos vivendo em nosso planeta. Ao que me consta, estamos por quase destruí-lo.
Abraços,
Luciana