O Silêncio do Pandeiro
É com muita tristeza que venho compartilhar com vocês que perdemos mais um morador da Residência Terapêutica do Distrito Sul, em Natal/RN, inaugurada em 20/05/2016.
Foram anos de muita luta por um lar e pouco tempo de proveito de uma vida digna para dois de seus moradores.
Desta vez foi o senhor Antônio Freire, 72 anos, que morou no Hospital Doutor João Machado, Natal/RN, por mais de 30 anos.
Durante anos viveu isolado e não aderia às atividades terapêuticas propostas pela instituição.
Apesar de ter temperamento forte, ele sempre fez sucesso com o sexo oposto – o que lhe rendeu o título de Don Juan. A distribuição de fumo e os galanteios com as mulheres eram seus instrumentos no jogo da sedução.
Em meados de 2005 passou a integrar a Moradia Assistida do referido hospital, que tinha como proposta o resgate de autonomia, independência e reinserção social dos usuários de longa permanência no serviço.
Na reconstrução de sua história de vida descobrimos que Freire possuiu no passado um pandeiro confeccionado de “lata de doce” pelo qual tinha um grande apreço e que o mesmo havia sido destruído gratuitamente, num gesto de total desrespeito pela sua dignidade.
A compra de um pandeiro em loja especializada fez parte do seu Projeto Terapêutico Singular e é claro que a ele foi assegurado o direito de escolher o instrumento de sua preferência.
O pandeiro tornou-se mais um objeto de atração em torno dele e nosso Don Juan ficou convencido que possuía um Harém.
Seu jeito retraído do passado deu lugar a um cavalheirismo encantador.
Gostava de caminhar de braços dados comigo quando íamos as compras. Ficou conhecido pelas suas gentilezas na loja Arte Musical, no Shopping Via Direta, Natal/RN, onde comprávamos seus pandeiros ou os afinávamos ou mudávamos o seu couro nos últimos 11 anos.
Tinha várias mulheres especiais em sua vida, mas Maria Inês da Conceição, companheira dos tempos de hospital e de Residência Terapêutica foi seu grande amor. Ela sabia conquistá-lo. Às vezes cedia aos seus encantos, em outras aparentava-se desinteressada. Através dessa “falta” ela conseguia sempre ser a preferida.
Como boêmio que era também gostava de dançar e chegava a cochilar nos braços das escolhidas.
Na Residência Terapêutica ele passou menos de um mês e foi transferido para o Hospital Monsenhor Walfredo Gurgel, Natal/RN, onde ficou por mais de três meses com complicações clinicas. Em 30/09/2016 retornou para o novo lar, tendo sido acolhido com muito carinho e recebido de sua amada um beijo cinematográfico e revelador de uma grande história de amor.
Em 02/09/2016 fui visitá-lo em sua casa. Ele estava abatido fisicamente, mas gentil como de costume. Conversamos um pouco e tive o privilégio de ouvi-lo dizer que me amava muito. Respondi que eu também o amava muito e ele esboçou um largo sorriso. Ajudei-o no desjejum, dei um beijo em sua testa e prometi voltar. Eu não sabia que aquele seria nosso último encontro, mas serei eternamente grata a Deus e a ele pela amorosidade daquele momento. Com certeza, ele veio selar uma história de carinho, respeito, amizade e de muitas batalhas travadas juntos.
Dois dias depois recebi a notícia que o senhor Antônio teve uma parada cardíaca e não resistiu. Coincidentemente, eu havia passado o dia anterior com uma angustia inexplicável. Percebi então, que meu “Véim”, como eu carinhosamente o tratava, tinha tentado me avisar que ia partir. No dia 05/10/2016 ele seria mais uma estrela a iluminar nossas vidas e nossas lutas.
Não pude me despedir dele como eu gostaria porque compromissos familiares me impediram de acompanhar o cortejo. No entanto, encontrei um tempinho para lhe ofertar um botão vermelho que coloquei em suas mãos em agradecimento as muitas lições que ele nos deixou na vida pessoal e profissional. Sentirei saudades de seu olhar sedutor, de sua voz já fraca me chamando de Zefa Couto, de sua cordialidade e dos muitos momentos compartilhados.
Meu Véim, sua casa agora é meu coração. Nele você terá morada eterna.
O pandeiro o acompanhou nessa última viagem e com certeza há festa no céu.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Olá Fátima/Zefa Couto,
As tuas crônicas intensificam a vida nesta rede. E mostram como os princípios da política de humanização da saúde têm a força de movimentar as práticas na direção de um mundo melhor.
Continue escrevendo desta forma que nos contagia e inclui. É como se estivéssemos muito próximos, ao lado do seu “véim”e de você.
Iza