Nesse post compartilho algumas reflexões construídas a partir da minha experiência como advogada em saúde, usuária e militante do SUS, e beneficiária de uma ordem judicial de fornecimento de terapia com bomba de infusão de insulina através do SUS. Ou seja, esse é um texto sobre judicialização da saúde a partir do ponto de vista de quem vive o fenômeno na própria pele.
Ao longo do último ano, os Poderes Executivo e Judiciário vem promovendo medidas para barrar a judicialização da saúde, sem priorizar o atendimento aos direitos dos cidadãos ou ao equilíbrio dos interesses envolvidos nas demandas de saúde, e sem acolher as demandas através da construção de políticas públicas de saúde. A reanálise do assunto pelo STF mostra bem o caminho que estamos tomando: de racionamento do acesso como significado de racionalização.
Muitos companheiros da área de saúde pública e coletiva louvam essas iniciativas sem perceber que, da mesma forma que a judicialização do tratamento de pessoas com HIV/AIDS acompanhou o processo histórico de abertura política e de conquistas democráticas no Brasil, neste momento as medidas contra a judicialização da saúde acompanham o momento histórico de retrocesso dos direitos sociais.
Essa é a solução que buscamos para defender o SUS: racionamento do acesso através de barreiras ao acesso ao Poder Judiciário?
Contexto histórico e evolução do fenômeno
O artigo 196 da Constituição Federal de 1988 define a saúde como um direito de toda pessoa no Brasil, garantido mediante a implementação de políticas públicas pelo Estado enquanto sua obrigação perante os cidadãos no território nacional. Na letra da norma mencionada:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
Com a promulgação da Constituição Federal em (batalha por sua) vigência, abandonou-se a concepção negativa de saúde como simples ausência de doença, adotando-se um conceito ampliado e positivo de saúde como bem-estar físico, psicológico, emocional e social, e o direito à saúde como o gozo de condições adequadas à promoção, proteção e recuperação da saúde.
No período ditatorial brasileiro, o acesso à saúde pública era restrito a trabalhadores registrados e contribuintes autônomos. Somente após a abertura política, com a criação do Sistema Único de Saúde pela Constituição Federal e pelas Leis Orgânicas (Lei 8.080/90 e Lei nº 8.142/90), a saúde no Brasil passou a ser um direito extensível a qualquer pessoa. Direito social (artigo 6º, CF) efetivado na prática através do acesso universal, integral e equânime a serviços e ações de saúde construídas e implementadas com a participação da sociedade, na forma dos artigos 196 e 198, II e III, da Constituição Federal:
“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – (…)
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III – participação da comunidade.”
Acompanhando o processo histórico de abertura política e de ampliação e democratização do acesso à saúde no Brasil, reconhecido como direito da cidadania, na década de 90 começaram a ser propostos os primeiros processos judiciais envolvendo tratamentos de saúde. Na época, o contagio pelo vírus HIV se alastrava no mundo inteiro, conferindo à AIDS a característica de epidemia global, demandando providências dos poderes públicos e dos gestores da saúde para garantir a sobrevida dos soropositivos, e para tentar frear a explosão de novos casos da doença.
Assim, os pedidos judiciais de terapias e medicamentos para tratamento de pessoas com HIV/AIDS foram os pioneiros da judicialização da saúde como fenômeno jurídico-político-social, e se tornaram um exemplo de eficácia da influência das decisões judiciais sobre a ampliação do acesso à saúde mediante a elaboração de políticas públicas a partir dessas demandas. A judicialização do tratamento de HIV/AIDS pode ser considerado como o caso mais exitoso em termos de conquista do direito coletivo à saúde através da submissão da demanda de uma política pública ao Poder Judiciário. A redução das ações judiciais referentes ao tratamento desta condição se deu na medida proporcional à construção de uma linha de cuidado e à incorporação de tecnologias ao SUS para o tratamento de pessoas soropositivas, incluindo a quebra de patente do coquetel anti-AIDS.
A despeito da evolução e da ampliação do acesso aos serviços e tratamentos de saúde através do SUS, com o fortalecimento da atenção básica como estratégia preventiva e implementação de protocolos e diretrizes terapêuticas para variadas condições, a judicialização da saúde “ganhou corpo” após o sucesso das demandas dos portadores de HIV/AIDS. Inspirados no resultado exitoso dos pacientes soropositivos, pessoas com outros diagnósticos e condições, ao se depararem com negativas e omissões administrativas, começaram também a buscar a integralidade da atenção, fortemente marcada por demandas de acesso a novas tecnologias farmacêuticas, através das decisões judiciais.
Documento acessível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/estrategias_cuidado_pessoa_diabetes_mellitus_cab36.pdf
Documento acessível em:
Diante do crescimento do número de ações judiciais solicitando o fornecimento das mais variadas prestações de saúde pelo SUS em todo o Brasil, em 2009 o Supremo Tribunal Federal (STF) convocou uma audiência pública para debater as nuances da responsabilidade do Estado (todos os entes federativos) perante os cidadãos na garantia do direito à saúde. Na ocasião foram ouvidos 50 especialistas, entre advogados, defensores públicos, promotores e procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde, e na fala de vários deles fez-se referência à defasagem tecnológica como um dos grandes motivos da ampliação da busca de acesso à saúde através do Poder Judiciário, ressaltando a necessidade de aperfeiçoamento do processo de atualização da oferta de serviços e medicamentos pelo SUS.
Arquivos da Audiência Pública do STF acessíveis em:
Textos integrantes da seção de contribuições da sociedade civil, acessíveis em:
Dois anos após o debate no STF foi instituída a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS – CONITEC, através da Lei nº 12.401/2011, que dispõe sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia no âmbito do Sistema Único de Saúde. Com a criação da CONITEC, conferiu-se às decisões de incorporação de medicamentos e de atualização de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas força vinculante de oferta de novos serviços e terapias na rede pública de saúde. Embora a audiência pública do STF não seja oficialmente associada à instituição da CONITEC, é possível afirmar que o debate motivado pelas ações judiciais de saúde em 2009 criou um contexto de influência para tanto, contribuindo para o aperfeiçoamento do processo de atualização da Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES) e da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME).
Atualmente, os processos judicias envolvendo demandas de medicamentos não padronizados no SUS estão suspensos desde maio de 2017 em função de determinação do Superior Tribunal de Justiça na instauração de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (Recurso Especial nº 1657156 – Tema 106), relacionado à obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS. A suspensão, no entanto, não é válida para pedidos judiciais de insumos, serviços e atendimentos, não relacionados ao julgamento em questão.
O Supremo Tribunal Federal também está analisando o fornecimento de medicamentos de alto custo não disponíveis nas listas do SUS e não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), em repercussão geral nos Recursos Extraordinários nº 566471 e nº 657718, mas não determinou a suspensão dos processos judiciais (https://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326275).
Na pele do usuário do SUS
Embora prevista em normas a atenção básica e especializada às mais diversificadas condições de saúde, através da assistência farmacêutica e dos serviços e atendimentos do SUS constantes de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, muitas vezes esses direitos não são efetivados na prática. Em função disso, inúmeras ações judiciais tem por objeto justamente o cumprimento ou não limitação administrativos da oferta de medicamentos e serviços constantes dos protocolos oficiais do SUS.
Em junho deste ano de 2017, durante exposição dos dados de 2016 de ações judiciais em andamento no Estado de São Paulo no II Congresso de Saúde Pública do Ministério Público de São Paulo, o Secretário do Estado da Saúde afirmou que 24% dos medicamentos judicializados são padronizados no SUS. Não esclareceu, entretanto, se essas demandas se originavam na ausência de produtos, serviços e atendimentos nos equipamentos públicos. Além das demandas motivadas pela ausência ou limitação da oferta na rede pública, os usuários muitas vezes demandam judicialmente medicamentos e serviços padronizados sem antes buscar o acesso a eles através do SUS, muita vezes por desconhecimento da disponibilidade do produto/serviço no sistema público.
Tratando-se de terapias não padronizados nas listas nacionais ou regionais de serviços e medicamentos, ainda assim é possível o acesso pelo SUS sem a propositura de uma ação judicial. Para tanto, o usuário deve efetivar um pedido administrativo à Secretaria Estadual ou Municipal de Saúde que, após analisar a solicitação excepcional (proveniente de profissionais das redes pública e privada de saúde), informa se a solicitação será atendida ou não, e neste último caso também o motivo da negativa. Um procedimento aparentemente simples em tese, mas complexo na prática, pelos seguintes motivos:
– falta de acesso às informações: a possibilidade de pleitear um medicamento/serviço/atendimento excepcional não é divulgado pelos gestores da saúde, e quando o usuário procura informações a respeito do pedido administrativo nem sempre consegue êxito em sua busca. Antes do advento da internet, muitos pacientes eram submetidos a uma verdadeira peregrinação pela cidade para saber onde deveriam efetivar o pedido, e quais documentos apresentar. Com os sites das secretarias de saúde na internet o procedimento de busca se tornou um pouco mais simples, mas essas informações não costumam ser destacadas nas páginas;
– demora/ausência de resposta: configurando-se a negativa ao pedido administrativo como documento hábil a justificar a propositura de uma ação judicial, algumas secretarias de saúde retardam ou não efetivam o envio da resposta de indeferimento. Em outubro de 2013 o jornal Diário de São Paulo noticiou os problemas de pessoas com diabetes que não recebiam resposta da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo aos seus pedidos administrativos (https://deboraligieri.blogspot.com.br/2013/10/reportagem-do-diario-de-sao-paulo-sobre.html), retardando o acesso (administrativo ou judicial) à terapia excepcional pleiteada. Desde então, e após manifestação e denúncia de blogueiros e ativistas (https://deboraligieri.blogspot.com.br/2013/09/denuncia-contra-secretaria-do-estado-da.html), são raros os casos de ausência de resposta da SES-SP, embora ainda haja problemas com o cumprimento do prazo de 30 dias para a resposta, conforme norma da própria pasta (artigo 62, da Resolução SS-54, de 11-05-2012);
– ausência de transparência dos critérios de deferimento/indeferimento do pedido: nem sempre há informações a respeito das condições necessárias ao acesso do usuário à terapia/atendimento excepcional, o que prejudica a elaboração de uma documentação capaz de amparar o pedido efetivado, pertinente aos critérios de análise utilizados pela gestão;
– critérios que violam o direito à dignidade humana do usuário: principalmente para os casos de pedidos administrativos de análogos de insulina, cuja prescrição se relaciona à redução dos episódios hipoglicêmicos, é comum a exigência de comprovação de frequência glicêmica abaixo de 50 mg/dl (situação de risco de inconsciência) ou número de internações por hipoglicemias ao ano. Nenhum paciente se submeterá ao risco de convulsões hipoglicêmicas, que afetam o desenvolvimento regular da vida da pessoa em seu quotidiano, para receber o tratamento: aqueles com maior poder aquisitivo comprarão os medicamentos prescritos excepcionalmente, e os hipossuficientes manterão as glicemias mais altas. Exigir do usuário que se coloque em risco como prova da necessidade do medicamento é indubitavelmente uma afronta à dignidade humana da pessoa;
– negativa com fundamento incoerente: se no momento da efetivação do pedido administrativo o usuário ignora os critérios permissivos do acesso à terapêutica ou ao atendimento excepcional, também os desconhece ao receber a resposta negativa, em regra fundamentada na existência de Protocolo Clínico e Diretriz Terapêutica para a sua condição, que indica outras ofertas já existentes na rede pública de saúde. Essas são respostas sem qualquer fundamentação lógica, pois o pressuposto do pedido administrativo é a necessidade de terapia/serviço não padronizados para atendimento de uma exceção à regra padronizada.
Em todas as situações narradas do processo administrativo de acesso a medicamentos/terapias não constantes dos protocolos do SUS, as barreiras encontradas representam o descompromisso de alguns gestores: informações, respostas e critérios de avaliação são ocultados, e justificativas abusivas ou ilógicas são utilizadas, para que a gestão não assuma um compromisso perante a sociedade de prestar os serviços e cuidados representantes da atenção integral e equânime!
Quando o cidadão não consegue acesso à terapia excepcional, ou seja, quando seu pedido administrativo resulta negativo, a via judicial mostra-se como alternativa de atendimento à demanda em saúde. Atualmente os Juízes mostram-se bastante favoráveis aos pedidos dos usuários da saúde, bastando um relatório médico bem fundamentado e a declaração de hipossuficiência econômico-financeira (consolidando a equivocada tese de que saúde pública é para pobres) para a concessão de tratamentos não padronizados, embora muitos julguem o direito à saúde restrito aos protocolos do SUS. Em qualquer das situações, parece haver um entendimento prévio à apresentação do caso concreto, não sendo raras as ocasiões em que a decisão é proferida sem muito apreço à condição singular do paciente jurisdicionado.
Mas a determinação de fornecimento de medicamentos e insumos ou prestação de serviços e atendimentos, por si só, não é suficiente para garantir a efetividade da ordem judicial e do acesso à saúde, a despeito da previsão de punições em caso de descumprimento. Na prática, as secretarias de saúde resistem e/ou retardam o cumprimento da obrigação imposta judicialmente através de diversas maneiras, em qualquer período de vigência da tutela concedida, principalmente no que tange à assistência farmacêutica:
– descumprimento do prazo para cumprimento da ordem judicial: com exceção dos casos de fixação de prazos extremamente exíguos (por exemplo, alguns Juízes determinam o fornecimento de medicamentos em 48 horas, sabidamente insuficiente para a aquisição do produto respeitando os trâmites burocráticos), em regra as secretarias de saúde ignoram o limite temporal determinado nas ordens judiciais. Embora a impossibilidade de tomada de providências dentro do prazo afigure-se factível, é raríssimo o pedido de prorrogação por parte dos gestores do SUS, que arbitrariamente cumprem a ordem judicial em seu próprio tempo;
– discordância da prescrição médica: é comum o fornecimento de medicamentos e insumos em desacordo com a prescrição médica, em relação à quantidade e à qualidade dos produtos (por exemplo, insulina em frasco ao invés de refil para caneta, e bomba de infusão de insulina sem monitoramento da glicemia ao invés de bomba com monitoramento);
– desabastecimento frequente: são também bastante comuns os episódios de desabastecimento de medicamentos e insumos, em prejuízo da continuidade do tratamento de paciente crônicos. Os motivos do desabastecimento são variados (atraso na entrega do produto pelo fornecedor, ausência de repasse de verba do ente federativo responsável para aquisição, troca da gestão executiva após eleições, retenção de produtos importados nas unidades alfandegárias pela ANVISA, entre outros) e impõem ao usuário a busca de soluções alternativas (custeio privado, troca com outros pacientes, racionamento do uso e, nos casos mais graves, abandono da terapia). O tempo de duração do desabastecimento é variável, conforme região e tipo de produto.
Nos casos de desabastecimento de medicamentos e insumos para pacientes crônicos, quando não é possível fazer uma troca ou racionar o uso, se pode, a pessoa acaba comprando o produto. É possível solicitar o bloqueio de verbas do ente federativo a que se dirige a obrigação, mas, devido aos trâmites burocráticos do processo judicial (manifestação do Ministério Público quando pertinente, intimação do Estado para cumprir a ordem judicial antes do bloqueio, ordem de bloqueio, recurso do Estado contra o bloqueio e respectivo julgamento, expedição de guia de levantamento, ordem de transferência bancaria) o valor não é direcionado ao usuário em tempo. Na verdade, pode demorar mais de um ano para o paciente receber o valor respectivo à compra do insumo/medicamento em falta. Mas se o pedido de bloqueio é efetivado para fins de ressarcimento de uma aquisição particular emergencial, o Estado contesta alegando ausência de risco de vida.
Ainda, é necessário ressaltar a resistência de boa parte dos Juízes em aplicar multas e em determinar o bloqueio de verbas dos entes estatais, sendo raríssimos os casos tanto de expedição quanto de efetivação de ordem de prisão de gestores inadimplentes com sua obrigação. Também o Ministério Público costuma rechaçar pedidos de investigação de desabastecimentos referentes a processos (administrativos e judiciais) individuais, ainda que a falta de insumos e medicamentos se relacione a inúmeros deles.
Na prática, portanto, as ordens judicias não são suficientes para garantir a eficácia do provimento jurisdicional e a efetividade do direito individual e coletivo à saúde.
Dogmas da judicialização da saúde
Nos debates e publicações (acadêmicas e jornalísticas) sobre judicialização da saúde alguns argumentos se repetem com uma certa frequência. Não obstante a legitimidade das teses defendidas (não necessariamente contrárias ou favoráveis à via judicial como acesso ao direito à saúde), seria interessante confrontá-las com a realidade dos jurisdicionados, como forma de qualificar e democratizar a discussão. A seguir, os pontos argumentativos mais comuns e outras possíveis contextualizações:
– desigualdade de acesso e iniquidade: é certo que a decisão proferida numa ação judicial individual privilegia o direito do demandante em detrimento do direito da coletividade. Mas há ações judiciais coletivas visando o atendimento de todos os cidadãos enquadrados na situação debatida no processo judicial. Considerando ainda que inúmeras ações individuais com a mesma demanda podem revelar determinada necessidade em saúde de uma coletividade, a propositura em massa das ações judiciais constitui-se em ferramenta de pressão social para aperfeiçoamento do sistema. Mas a criação/ampliação de linhas de cuidado depende da escuta e acolhimento dessas demandas pelo Poder Executivo. E ter o mesmo direito à falta de acesso não é igualdade, permanece sendo falta de acesso, e isso sim é iniquidade;
– benefício exclusivo de pessoas da classe média/alta: afirmação relacionada a dados de pesquisas que revelam maior número de pedidos judiciais fundamentados em prescrições de profissionais da rede privada de saúde e propostas por advogados particulares, passível de relativização. As pesquisas acadêmicas que trazem esses dados analisam períodos de atuação incipiente das Defensorias Públicas, instituídas há pouco mais de dez anos. Dados mais atuais revelam uma modificação desse quadro. Na pesquisa “Judicialização em saúde” do programa de Direito Sanitário da Fiocruz, relativa a processos propostos contra o Estado do Rio de Janeiro entre 2012 e 2013, verificou-se que 54,86% das demandas judiciais haviam sido propostas pela Defensoria Pública, e 39,47% por advogados particulares (https://pt.slideshare.net/CONITEC/judicializao-em-sade). Os Juizados Especiais da Fazenda Pública, que dispensam a atuação de advogado nas causas de pequeno valor, só foram instituídos a partir de 2009, e também não recebem muita atenção dos estudos sobre judicialização da saúde. Já a superioridade de prescrições da rede privada de saúde é facilmente explicada pela dificuldade de acesso às consultas na rede pública em algumas regiões, e também pela contradição da prescrição de terapias não padronizadas a pessoas dependentes da assistência pública em saúde;
– pedidos exagerados: é bastante comum, principalmente no caso de dados coletados por gestores da saúde, a apresentação de uma lista contendo itens caracterizados como exageros. Não ignorando a existência de pedidos fúteis, alguns deles, quando considerados no contexto da terapia e da realidade do usuário, são fundamentados e amparados pelo direito à saúde. As bombas de infusão de insulina, por exemplo, funcionam à base de pilha, compradas por um valor não tão simbólico. Negar a possibilidade de dificuldades de custeio dessa pilha por algumas pessoas com diabetes é negar a desigualdade social no Brasil. O Poder Executivo, antes da promulgação da Lei Complementar nº 141/2012 (que entre outras disposições define o que são despesas com ações e serviços públicos de saúde) também poderia ser apontado como titular de uma lista de exageros. Análise do Ministério da Saúde em 2010 sobre dados dos investimentos em saúde dos Estados em 2008 revelou a inclusão de gastos com planos de saúde de servidores e projetos de segurança nas despesas em saúde (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1505201006.htm);
– reserva do possível: é certo que as ordens judiciais de fornecimento de terapias e procedimentos em saúde não debatidas previamente nas instâncias de organização e planejamento do SUS representam uma interferência indesejada na gestão financeira do sistema público de saúde. Todavia, e considerando o histórico baixo investimento em saúde no Brasil (com exceção de boa parte dos Municípios, muitos deles endividados pela insuficiência de repasse de verbas estaduais e federais), reduzido ainda mais após a promulgação da Emenda Constitucional nº 95/16 (teto dos “gastos” públicos), não é possível defender a limitação da atenção à previsão orçamentária. A previsão orçamentária do SUS deve se adaptar às disposições constitucionais acerca da universalidade, integralidade e equidade do acesso à saúde (inviável conforme as novas regras da EC 95, cuja constitucionalidade é questionada judicialmente no STF), e não o contrário;
– explosão das demandas judiciais contra o SUS: desde o último ano, o grande aumento do número de ações judiciais envolvendo pedidos de terapias, tratamentos e serviços através do SUS vem povoando diariamente os noticiários no país. Inúmeras pesquisas e estatísticas confirmam essas notícias, mas há outros dados relevantes pouco ou não explorados nos debates sobre judicialização da saúde no Brasil. O número de ações judiciais relacionados à saúde suplementar, questionando cláusulas contratuais e/ou buscando garantir atendimento/cobertura pelos planos de saúde, que integram a judicialização da saúde, recebem muito menos atenção que as ações promovidas contra o SUS. No Estado de São Paulo, conforme dados comparados entre estudos da FAPESP e pesquisa conduzida pelo Professor Mário Scheffer (Faculdade de Medicina da USP), nos últimos cinco anos a quantidade de processos movidos por usuários contra a gestão estadual de saúde aumentou 92% enquanto o número de ações judiciais contra planos de saúde no Estado de São Paulo aumentou 631% em primeira instância (https://deboraligieri.blogspot.com.br/2017/02/acoes-na-justica-de-sp-contra-planos-de.html e https://redehumanizasus.net/95960-judicializacao-da-saude-a-culpa-e-de-quem). Também merecem atenção os dados do relatório “Justiça em Números” de 2016, do Conselho Nacional de Justiça, pela ausência dos serviços/assistência pública em saúde no rol dos 20 assuntos mais demandados na Justiça estadual, onde tramitam a maioria das ações de saúde pública, aparecendo apenas em 8º lugar no elenco de assuntos mais demandados em 2ª instância (lembrando da obrigatoriedade de recorrer contra as sentenças condenatórias proferidas contra o Estado).
Relatório “Justiça em Números 2016” do CNJ acessível em:
Os argumentos citados são utilizados para qualificar as demandas de saúde como abusivas. Não ignorando as notícias de mau uso da judicialização da saúde, casos de exceção, buscar o Poder Judiciário para garantir o acesso à saúde negado ou omitido pelo Poder Executivo, é um recurso legítimo para reduzir o distanciamento entre o direito vigente e o direito vigente – expressão aludida no artigo “Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde”, de Miriam Ventura, Luciana Simas, Vera Lucia Edais Pepe e Fermin Roland Schramm (https://www.scielo.br/pdf/physis/v20n1/a06v20n1.pdf e https://redehumanizasus.net/95067-judicializacao-da-saude-como-recurso-legitimo-para-a-reducao-do-distanciamento-entre-o-direito-vigente-e-o-direito-vivido) na área pública de saúde, e para evitar os crescentes abusos das empresas de saúde suplementar.
Soluções institucionais para lidar com o fenômeno
Desde que a judicialização da saúde ganhou relevância nos âmbitos jurídico, político e social, o Poder Judiciário vem desenvolvendo ferramentas para tentar solucionar o crescimento das ações judiciais que demandam atendimentos e serviços nas áreas pública e privada de saúde. Alguns dispositivos de prevenção e solução de conflitos foram criados, mas nenhum deles prevê a participação social em seu sistema de funcionamento. Entre eles, podemos citar os seguintes:
– Fórum da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ): instituído em 2010 pelo CNJ para monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, elabora metas e recomenda a criação de ferramentas auxiliares às decisões judiciais para racionalizar o acesso ao direito à saúde. Oferece um repositório de pareceres técnicos sobre o tratamento de patologias e medicamentos, e promove debates na comunidade jurídica com a participação de gestores da saúde. Contudo, não prevê a participação de associações de pacientes e outras organizações representativas dos usuários do SUS ou dos associados de planos de saúde (https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude);
– Núcleos de conciliação: parcerias firmadas entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo para prevenir a propositura de ações judiciais desnecessárias e para facilitar o acesso aos serviços e atendimentos em saúde nas áreas pública e privada de saúde. A princípio, boa parte desses núcleos era constituído apenas por representantes dos Poderes Executivo e Judiciário e por associações de empresas da saúde suplementar. Em São Paulo, por exemplo, o Tribunal de Justiça implantou o Núcleo de Apoio Técnico e Mediação (NAT), formado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), pela Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge) e pela Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), entidades que representam operadoras de planos de saúde, responsável pela emissão de pareceres sobre pedidos liminares contra planos de saúde, clara situação de desequilíbrio de forças, já que apenas uma das partes interessadas (e justamente a demandada) está representada no grupo (https://deboraligieri.blogspot.com.br/2015/07/nucleo-de-apoio-solucao-de-demandas.html). Da mesma forma, o setor de triagem farmacêutica do Juizado Especial da Fazenda de São Paulo, que atua como um núcleo de conciliação, tem em sua composição representantes das Secretarias Municipal e Estadual de Saúde, mas não dos Conselhos Municipal e Estadual de Saúde, ou qualquer outro órgão representante dos usuários do SUS. Mais recentemente, os Poderes Judiciário e Executivo tem incluído representantes das Defensorias Públicas em seus núcleos de conciliação (o “Acessa SUS” em São Paulo é um desses exemplos – https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=38743), o que é um avanço, mas uma iniciativa tímida em relação à necessidade de maior participação da sociedade na tomada de decisões sobre saúde pelos Poderes Judiciário e Executivo, no âmbito dos processos judiciais;
– Apoio e capacitação dos Juízes em medicina baseada em evidências: reconhecida como uma ferramenta útil à construção de políticas públicas de saúde, a medicina baseada em evidências oferece soluções médicas aplicáveis às manifestações regulares de determinada condição de saúde. Mas sempre há exceções, também amparadas pela universalidade e equidade do sistema público de saúde brasileiro. A medicina baseada em evidências servirá então para ajudar o Juiz a discernir entre as situações regulares e excepcionais, ou para reforçar a negativa administrativa de acesso à saúde a pessoas que não respondem aos tratamentos tradicionais? Ainda é necessário ressaltar a escassez de pesquisas, e consequentemente de evidências científicas, nos casos em que o “mercado consumidor” não se revela tão grande, como ocorre nos casos de pessoas com diabetes tipo 1 (https://redehumanizasus.net/87645-diabetes-e-inovacoes-tecnologicas-politicas-publicas-dependem-de-numeros) e com doenças raras, por exemplo. Portanto, em muitas situações, embora a terapia traga benefícios importantes aos usuários, não há evidências científicas que a suportem por ausência de pesquisas suficientes. Além disso, seria importante que os membros do Poder Judiciário conhecessem o SUS para além de seus princípios e diretrizes legais, tomando contato direto com as unidades de saúde e recebendo treinamento sobre política e gestão em saúde pública. Mais importante que conhecer as evidências médicas é conhecer o sistema público de saúde no chão da UBS, no quotidiano dos serviços de saúde, nas farmácias públicas.
Com a configuração atual, com uma participação social limitada às Defensorias Públicas (quando estas integram os dispositivos de solução de conflitos em saúde), as ferramentas em questão representam um posicionamento em favor da parte mais forte nas relações políticas de saúde, e representam um risco de desequilíbrio de forças em prejuízo dos cidadãos e da democracia, e contra a saúde enquanto direito social.
A pele de jurisdicionada que habito
A judicialização da saúde é um fenômeno que acompanhou o processo histórico de abertura política do Brasil e de reconhecimento dos direitos sociais, cuja efetivação deve ser garantida pelo Estado através da implementação de políticas públicas. A participação da sociedade na construção, execução e análise dessas políticas é o que legitima a atuação dos poderes públicos enquanto representantes e defensores dos interesses da população.
Infelizmente, também acompanhando o momento histórico de retrocesso nas políticas de atendimento dos direitos sociais, no Brasil e no mundo, o Poder Judiciário vem ofertando soluções limitadoras e restritivas do direito à saúde, transformando racionalização em racionamento do acesso ao direito à saúde.
Inúmeros avanços foram observados desde a instituição do SUS na Constituição Federal e na Lei nº 1.080/90, tanto em questão de acesso a serviços e atendimentos em saúde, quanto de oferta de ferramentas de participação social na política de saúde. Mas ainda é necessário ampliar o diálogo entre os cidadãos e os gestores, para que haja efetiva participação da sociedade na tomada de decisões em saúde, e para que as pessoas compreendam melhor que certos apelos da indústria farmacêutica não se confundem com necessidades de saúde, para desvincular a falsa correspondência generalizada entre alta tecnologia (ou tecnologias duras de forma isolada) e saúde.
Promover um processo judicial para conseguir acesso ao tratamento ou atendimento necessário à saúde não é a opção desejada por nenhum jurisdicionado, que muitas vezes se torna parte num processo judicial por estar aparte da construção da política de saúde, ou por desconhecer os caminhos de acesso aos serviços do SUS. Por isso as ações judiciais não podem ser analisadas apenas como uma força contrarreguladora do sistema de saúde, mas como um grito de alerta de usuários carentes de maior cuidado pelo Estado. Este é o caso das pessoas com diabetes tipo 1, por exemplo, com necessidades de cuidados diferenciados e cujas demandas inundam os Tribunais do país por ausência de uma linha de cuidado específica.
Escutar os jurisdicionados, transformando as demandas em políticas de saúde, e ampliar as ferramentas de diálogo com os usuários do SUS, compartilhando com eles a ocupação dos espaços de tomada de decisões, é a solução mais justa para a judicialização da saúde. O comprometimento da gestão é a única solução eficaz para garantir o acesso à saúde. A escuta dos usuários, o diálogo com a sociedade, é a ferramenta democrática para a implementação de práticas de efetivação do direito individual e coletivo à saúde.
Gráficos integrantes do relatório “Judicialização em Saúde no Estado de São Paulo”, da II Jornada de Direito da Saúde do CNJ, acessível em:
https://www.cnj.jus.br/eventos-campanhas/evento/133-ii-jornada-de-direito-a-saude
Por ruiharayama
Que ótimo texto! Reflexões aprofundadas sobre o processo de judicialização. Realmente, temos um tratamento por vezes fantasioso do processo da judicialização quando falamos de medicamentos de alto custo, mas nos esquecemos das pilhas dos infusores e até mesmo dos implantes cocleares. Vou passar para os meus alunos do curso de Direito em Saúde.