Saúde em Porto Alegre: Exploração da demanda reprimida como vantagem mercadológica

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Tenho pretendido uma abordagem ampla do SUS que amplie o cenário de análise. Mesmo partindo questões muito pontuais como o cartão SUS, o financiamento. o trabalho em saúde, entre outros.

Me proponho a pensar o Sistema como costumamos desejar pensar a saúde de nossos usuários. Realizar uma abordagem em simetria com o que propomos como atenção integral.

Assim poderemos planejar e executar tendo em mente esta dinâmica complexa que integra as várias faces do SUS em um todo complexo e multifacetado. Uma mistura de conhecimento científico, práticas políticas mais ou menos democráticas e o perfil cultural de nossa população usuária.

Me apoio em textos de Bruno Latour e Michel Serres para fundamentar um tipo de pensamento que procura trazer a tona relações conceituais que costumam ser pensadas em disciplinas que não dialogam objetivamente. Humanização e corrupção, saúde e segurança, estado democrático de direito e sistemas de saúde.

Para dar conta desta inquietação, que é uma espécie de detonador de iniciativas de reflexão e escrita, estamos, eu e Gilmar França, escrevendo um artigo que irá encontrar um espaço de gestação transparente e compartilhada. Irei colocando os capítulos como posts aqui na rede.

Boa leitura!

  

Introdução
São cerca de 700 milhões de Reais que entram a cada ano no município de Porto Alegre através do Fundo Municipal de Saúde, gerenciado pelo prefeito e secretário municipal, sob fiscalização do Conselho Municipal de Saúde. Portanto uma parte importante na engrenagem da economia da capital dos gaúchos depende desta fonte de recursos.

Nesta sentença curta estão articulados explicita e implicitamente conceitos e relações sociais que não estamos acostumados a pensar em conjunto. Economia, ciência e política se articulam para criar instituições. De um lado é preciso decifrar a interação destes diversos fatores e de outro entender a relação desta interação com a permanente realidade de crise do sistema de saúde pública brasileiro.
Veremos que as fronteiras formais são ultrapassadas por uns atores, enquanto outros permanecem imóveis. E cada postura responde a uma dada visão de mundo e explica a manutenção da consecução de interesses privados no ceio do sistema de saúde pública.

A diversidade entre conceitos econômicos e culturais

Há várias maneiras de se pensar o setor da saúde na economia em um de mercado de bens simbólicos unificado na forma monetária. Para efeito de entendimento, consideremos duas:

• Saúde Pública, como gerenciamento das condições do perfil epidemiológico da população. Ou seja, referente à esfera do social e da política, de um lado e dos saberes e das técnicas científicas, de outro;
• Saúde Pública como parte de um mercado monetário dentro da área de serviços, configurando um espaço de confusão entre o interesse público e privado.

No primeiro caso, temos a saúde como componente de um mercado mais amplo, relacionado ao bem comum e aos direitos da cidadania. Um espaço onde a ciência e o saber se articulam na arena democrática. Um bem de civilização, por assim dizer. No segundo, temos o mercado econômico puro. Um tipo peculiar de mercado, o monetário, com uma lei própria, não escrita, mas de estrema eficácia.

As implicações e articulações subentendidas, nestes dois cortes conceituais, são inúmeras:

• Contratos de prestação de serviços de empresas terceirizadas e cooperativas de trabalho (legais e de fachada);
• Credenciamento de diferentes tipos de instituições prestadoras de serviço para o sistema como: hospitais privados, hospitais filantrópicos, sociedades de economia mista, hospitais públicos, hospitais universitários (públicos e privados), fundações de direito privado, fundações públicas, etc;
• Contratos e licitações com fornecedores de equipamentos e insumos;
• Investimento de infra-estrutura em função do crescimento demográfico e perfil epidemiológico flutuante;
• Regulação de fluxos de demanda em função de diagnósticos e tratamentos de pequena, média e alta complexidade, todos implicando em fatias do valor do mercado acima citado;
• Financiamento de candidatos e partidos políticos (legalmente e por caixa dois);
• Relações de clientelismo e coronelismo político travestidos de gestão pública;
• Tráfico de influências no tratamento a demanda reprimida;
• Mercado de trabalho heterogêneo que consome uma parcela significativa dos investimentos globais citados no primeiro parágrafo deste texto.

Cada uma destas implicações mereceria uma análise detalhada. Neste texto nos deteremos sobre os aspectos que dizem respeito diretamente a questão da gestão da tão noticiada demanda reprimida de procedimentos de saúde fornecidos pelo SUS em Porto Alegre. Todos os itens descritos acima têm alguma parcela de relação entre si.

Nos concentraremos nos aspectos mais relevantes para fundamentação da hipótese defendida ao longo deste texto: A demanda reprimida é usada para direcionar entre os atores econômicos da saúde, as fatias do mercado de 700 milhões de reais ao ano representado pelo SUS em Porto Alegre.

Em artigos anteriores já propus a reflexão sobre as razões que levam a concentração de grande parte dos recursos investidos na saúde no Rio Grande do Sul no pólo de saúde de Porto Alegre. Fato que gera a famosa “ambulancioterapia”.