A insidiosa privatização dos sistemas públicos de saúde ao redor do mundo
Não sei quantos estão a par e têm acompanhado as preocupantes notícias que têm agitado a imprensa européia e, especialmente, a britânica nos últimos dias, onde o dia 1º de abril de 2013 vem sendo tratado como o ano da morte (por assassinato!) do célebre NHS (National Health System), o Sistema Nacional de Saúde ou o "SUS" britânico.
Acompanhar estes acontecimentos e ampliar nossa compreensão do processo em curso me parece fundamental para todos aqueles que defendem um sistema público de saúde.
Parece que o mundo começa a se apresentar, realmente, de cabeça pra baixo, diante do nosso olhos…
O NHS, que sempre foi uma espécie de "modelo positivo" para aqueles que lutam pela possibilidade de um sistema público de saúde, mesmo dentro de uma sociedade capitalista, começa a se transformar num "modelo" a ser estudado de como se dilapida e se abre o caminho para a privatização selvagem de um bem público, mesmo com o peso e a transcendência política que tem o NHS para os cidadãos britânicos (o NHS que foi homenageado com um patrimônio público maior dos ingleses na abertura das Olimpíadas do ano passado – foto que ilustra este post).
Não vou me prolongar, neste momento, nas minhas próprias impressões e análises, mas apenas compartilhar um pequeno conjunto de textos que apresentam bem a situação e são bastante suficientes para inserir a todos neste debate.
Destacarei, entretanto, alguns pontos que me parecem fornecer importantes "lições" do caso inglês para entender o modo como especialmente os médicos (os melhores! os preocupados com os interesses de seus pacientes!) vêm sendo ardilosamente cooptados neste processo (vulnerabilidade que me parece ainda maior entre os bons médicos brasileiros que atuam no SUS, pois a desesperadora precariedade das condições de trabalho os tornam ainda mais suscetíveis de embarcar em conversa barata sobre as "virtudes" de determinados arranjos público-privado).
Vejam, inicialmente, a matéria que saiu na edição do último domingo do jornal The Independent, para sentirem a repercussão dramática na opinião pública. O tom é de "obituário": Farewell to the NHS, 1948-2013: a dear and trusted friend finally murdered by Tory ideologues (Adeus ao NHS, 1948-2013: um querido e confiável amigo finalmente assassinado pelos ideóogos conservadores)
Está aqui: https://www.independent.co.uk/voices/farewell-to-the-nhs-19482013-a-dear-and-trusted-friend-finally-murdered-by-tory-ideologues-8555503.html
[Para quem tiver dificuldades com a lingua inglesa, lembrem-se que sempre é possível algum socorro com o Tradutor Google. Não é perfeito, mas ajuda um pouco nessas horas…]
Mas para uma compreensão mais acurada do processo, recomendo a leitura dessa entrevista, publicada no último dia 20/03 no British Medical Journal, com a Dr Lucy Reynolds, pesquisadora da London School of Hygiene and Tropical Medicine: Health and Social Care Act – The future of the NHS—irreversible privatisation? (Lei de Assistência Social e Saúde – O futuro do NHS – privatização irreversível?)
Aqui: https://www.bmj.com/content/346/bmj.f1848
É nesta entrevista que encontramos alguns pontos que me parecem bastante importantes de destacar na descrição e análise de um processo que não começou com o Health and Social Care Act, que apenas sacramenta a "reforma" intitulada Equity and excellence: Liberating the NHS (Equidade e Excelência: Liberalizando o NHS) e que vem sendo promovida desde 2010 pela maioria conservadora do parlamento britânico. Mas o mais interessante (e alarmante) é que este processo começou ainda antes, sob a maioria do "novo trabalhismo" (New Labor) britânico no parlamento (leia-se Tony Blair e Gordon Brown).
São estes "passos preliminares" e seus "métodos" que me parecem fundamentais de serem observados e compreendidos, já que o mesmo "canto da sereia" tem soado por aqui…
Como diz a pesquisadora: We’re not going to have a big bang privatisation for the NHS. We’re going to have a very quiet one. (Nós não vamos ter uma privatização "big bang" para o SNS. Nós vamos ter uma bem silenciosa.)
Insidiosamente…
Acho que seria especial importância prestar atenção ao modo como os GPs (General Practitioners – médicos generalistas, equivalentes aos nossos médicos de família e comunidade) foram cooptados numa primeira etapa (ainda sob a "bom mocismo" do New Labor e suas propostas de "flexibilização" dos arranjos público-privado, que prometia maior autonomia e "empowerment" para os GPs e seus pacientes): And the reason we have been told about GP empowerment and patient empowerment is firstly to lure the doctors into complying with this. They are belatedly starting to understand that this has been a trick. (E a razão pela qual nos foi dito que isso levaria a um empoderamento e emancipação dos médicos generalistas e seus pacientes foi, em primeiro lugar, para fazer com que os médicos aderissem a isso. Eles estão, tardiamente, começando a entender que isso era uma armadilha.)
A pesquisadora indica com clareza como esse arranjo abriu o caminho para que os serviços de saúde passassem a ser geridos por consórcios de GPs, que passaram a contratar gestores privados de saúde para gerir "adequadamente" esses serviços (os CCGs: clinical commissioning groups – grupos clínicos comissionados).
Qualquer semelhança com arranjos que têm sido alardeados como "solução" para nossos problemas não é uma mera coincidência…
As consequências que, agora, estão ficando bastante evidentes para os cidadãos, pacientes, GPs e pesquisadores do NHS, são desalentadoras…
On 1 April 2013 the regulations are coming into place to show that everything has to be put out to competitive markets by CCGs [clinical commissioning groups] and the national commissioning board. That will create rights for private providers to supply which will not only allow them to take quite a lot of the share of the NHS budget for their business right now, it also potentially makes the privatisation irreversible in the future.
(Em 1º de Abril 2013, os regulamentos estão entrando em vigor para indicar que tudo deve ser empurrado para mercados competitivos por CCGs e pelo Conselho Nacional de Comissionamento. Isso cria direitos para os prestadores privados que garantem não apenas que eles possam tomar uma boa parte do orçamento do SNS para os seus negócios agora, mas também torna a privatização, potencialmente, irreversível no futuro.)
We now have the NHS reorganised in such a way that it can be relaunched as a mixed market, so not just the public health sector service, but also a healthcare industry. The rules are structured in such a way that there will be a gradual transition between those two groups. The public sector will shrink away, and the private sector will grow.
(Nós temos agora o SNS reorganizado de tal forma que ele pode ser relançado como um mercado misto, não apenas como o setor de serviços da saúde pública, mas também uma indústria de cuidados de saúde. As regras estão estruturadas de modo tal que haverá uma transição gradual entre esses dois grupos. O setor público vai encolher e o setor privado vai crescer.)
Mas, como disse, isso são apenas alguns destaques de uma entrevista que merece ser lida com cuidado e na íntegra.
Acho que a transcendência do fato (que não leremos na Veja, nem será televisionado pela Globo) fica bem expressa quando uma figura do quilate de Richard Horton, editor-chefe da revista The Lancet e professor emérito da London School of Hygiene and Tropical Medicine exorta à derrubada da lei e do atual governo britânico:
“Nós estamos a ponto de vivenciar uma fase de caos sem precedentes nos nossos serviços de saúde. Aqueles entre nós que se opuseram a essa lei não devemos nos regozijar de que essa confusão aconteça. As pessoas vão morrer graças à decisão do governo de focar na competição ao invés de na qualidade no cuidado à saúde. O desastre que se aproxima coloca ainda mais responsabilidade sobre nós para derrubar essa legislação destrutiva e remover esse governo não democrático”.
As repercussões se multiplicam em todo mundo e compartilho, por fim, para completar essa primeira série de leituras, a primeira manifestação brasileira, em artigo de Reinaldo Guimarães, publicado ontem no site do CEBES: https://cebes.org.br/verBlog.asp?idConteudo=4287&idSubCategoria=56
Espero ter contribuído e gostaria muito que pudéssemos aprofundar essas discussões, que tocam de tão perto os maiores valores que defendemos e que unimos à nossas escolhas profissionais.
Acho que devemos criar mais oportunidades públicas de fazer esse debate de forma qualificada. Esse tem sido um dos principais objetivos desta Rede!
Por Marco Pires
Conhecer o futuro é uma pretensão espúria. Mas atentar para os recorrentes ciclos históricos de onde emergem mundos cada vez mais imprevisíveis é recomendável. Estas primeiras décadas do milênio repetem o tipo de cenário de instabilidade econômica, explosão demográfica e acelerada mudança tecnológica na Europa do final do século XIX. O que veio depois foi guerra, genocídio e 40 anos de guerra fria.
Uma indicação do que o mundo poderá se tornar a partir da reação a crise econômica na Europa é a exata descrição que o Ricardo faz no texto acima. O velho mundo aristocrata e desigual se insinua nas bases do novo. Alguns retornos serão sombrios. Nossa luta será uma antecipação e uma barreira ao retrocesso ou apenas uma reação tardia?
A quebradeira do Estado de bem estar europeu cria esta mobilidade da riqueza da sociedade para as mãos dos empresários oportunistas da doença.
O primeiro mundo exportou a servidão para o terceiro mundo na forma de escravidão assalariada, exportou a poluição na forma de produção industrial desregulamentada. O primeiro movimento gerou a ociosidade massiva de uma mão de obra altamente qualificada. No segundo movimento, os pobres do terceiro mundo, fazem a poluição retornar ao mundo desenvolvido como alterações globais do clima.
Nos próximos anos vamos viver inúmeras instabilidades causadas pela irregularidade das chuvas em extensas áreas de produção agrícola ao redor do mundo. No momento vivemos a pior seca dos últimos 50 anos no nordeste brasileiro.
Estas instabilidades climáticas vão fazer bilhões de dólares trocarem de mãos em diferentes Estados produtores no mundo todo, em função da escassez pontual e eventual de safras e da produção de alimentos.
Economias com capitais altamente volatizados vão ver os investidores privados avançar na direção dos cofres públicos. Alterações nos padrões de atenção a saúde em países de proteção social como Grécia, Espanha e Itália irão precipitar medidas de contenção em potências econômicas como Alemanha e Inglaterra.
Podemos contar com fortes reações dos movimentos sociais em cenários de ociosidade da mão de obra e crise na eficiência dos serviços de saúde e educação.
Nosso desafio é propor uma direção para estas manifestações de reação a crise econômica que afeta modos de vida (que, aliás, não são de todo saudáveis).
Como viabilizar novos mundos em países desenvolvidos e sanar as profundas iniquidades nos países pobres, sem frear o desenvolvimento econômico nas nações emergentes?
Seguimos conversando.