Direito e Justiça: antônimos ou sinônimos? O Juiz que não enxerga o jurisdicionado não pratica Justiça. Pratica arbítrio.
Em muitos casos anteriores com que trabalhei, pelo fato do Juiz não conhecer as peculiaridades do diabetes, doença extremamente deletéria quando descontrolada, e/ou tendo sido colocado para julgar causas de saúde há pouco tempo, por praticamente desconhecer as leis de saúde pública, e ainda por falta da leitura completa da ação proposta, a decisão acabava não correspondendo aos ditames legais. Em todos eles, depois de explicadas pessoalmente as circunstâncias do diabetes e da lei paulista que determina o fornecimento de todo e qualquer tratamento pelo Estado, a liminar era concedida e mantida em sentença procedente.
Durante uma hora de conversa sobre os riscos do descontrole da glicemia de Érica, e sobre as dificuldades enfrentadas pelos pacientes para receber os insumos, até mesmo com ordem judicial, o Juiz mostrou-se francamente desfavorável ao fornecimento de medicamentos pela via judicial, pois acreditava que a Secretaria da Saúde cumpria sua obrigação fornecendo as insulinas previstas no protocolo do SUS, a despeito de eu ressaltar que a terapêutica com referidas insulinas não controlava a glicemia de Érica e arriscava sua sobreviviência digna, livre de complicações do diabetes.
Redargui ponderando que Érica não poderia ser penalizada pelo crime de terceiros, tampouco pela incompetência do Poder Judiciário (e também do Executivo) em diferenciar os pedidos legítimos dos falsos. Ainda, se todos são inocentes até prova em contrário (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal), salvo se existisse prova de que a paciente estava requerendo terapêutica não condizente com sua condição de saúde, não poderia ser considerada uma fraudadora pelo simples fato de ser doente e precisar de tratameto, que o Estado deveria fornecer espontaneamente e não forneceu. A Secretaria da Saúde sequer respondeu ao pedido que lhe foi encaminhado.
E a negativa da liminar foi mantida, como se Érica não fosse um indíduo, mas parte de um padrão pré-concebido pelo Juiz a partir de uma exceção nos pedidos judiciais de medicamentos – a má-fé.
Érica não era mais uma pessoa, uma diabética que necessitava com urgência de tratamento para prevenir a cegueira e problemas cardiovasculares. Era uma fraude pré-concebida, antes mesmo da ação ser proposta.
– Pessoais:
Normas infraconstitucionais de saúde (protocolos clínicos) e convenções judiciais não são superiores à ordem Constitucional de proteção à saúde enquanto dever do Estado.
O Juiz que não enxerga o jurisdicionado em sua individualidade não pratica Justiça. Comete arbitrariedade.
trechos retirados do livro “O Sistema Único de Saúde e suas Diretrizes Constitucionais“, de Mônica de Almeida Magalhães Serrano, págs. 125/128:
“O Decreto 7.508/11 ao regulamentar a Lei Orgânica de Saúde, (…) adota modelo de gestão por processos ou também conhecidos por protocolos de atendimento médico, que objetiva a padronização dos serviços públicos de saúde, inclsuive na área de assistência farmacêutica, como estratégia que busca atingir melhor resultado no menor tempo possível e com redução de custos. (…) Protocolos e Diretrizes Terapêuticas, com critérios a serem seguidos pelos gestores, além da listagem dos serviços de saúde – RENASES, e medicamentos a serem disponibilizados pelo SUS – RENAME, com o devido acompanhamento de Formulário Terapêutico Nacional.
Os protocolos tem por finalidade a padronização no atendimento ao usuário, com base em estudos científicos que possam justificar as medidas adotadas.
(…) o sucesso da padronização está diretamente ligado à competente e eficaz elaboração dos protocolos, diretrizes e listagem de serviços e medicamentos disponíveis, bem como a constante atualização destes, o que inclui necessariamente a efetiva participação comunitária.
(…) não se pode considerar o modelo como absoluto, pois os protocolos e diretrizes traçam perfil básico, sendo certo que há situações em que os usuários possam exigir ações e serviços ou mesmo medicamentos e doses diferenciados, que escapam do padrão oficial. Em tal passo, alguns usuários podem necessitar relativamente a uma mesma moléstia de uma intervenção diferenciada daquela prevista no modelo, por não responderem positivamente ao tratamento idealizado, ou exigirem medicamento ou dosagem diversa da prevista, além de não ser possível excluir a ocorrência de algum componente alérgico.
(…)
Assim, para fins de organização dos serviços e planejamento, pode ser admitida como adequada a adoção de uma estratégia de protocolos e diretrizes padronizadas e previamente definidas, mas não de forma absoluta, justamente para garantir o cumprimento dos princípios norteadores do SUS e estabelecidos pela Constituição Federal, quais sejam, universalidade, eqüidade e integralidade.(…)
(…)
Há situações em que nem mesmo há previsão, seja pelo gestor federal ou local, de tratamento ou dispensação de medicamentos pelos SUS, por meio de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. Assim, seja para situações não previstas ou para aquelas em que a regra estabelecida não seja viável para o adequado tratamento de saúde a possibilitar vida digna ao cidadão e usuário, com base em declarações médicas que justifiquem o atendimento diferenciado, deve o Estado se responsabilizar pela integridade física do cidadão, ainda que por meio de ação judicial. Assim, o critério de padronização adotado, para fins de planejamento e organização do SUS, e detalhado por meio do Decreto nº 7.508/11, não pode ferir as determinações concitucionais, especialmente a universalidade e a integralidade.”