Para dar fim ao julgamento e compreender o corpo que não agüenta mais

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Para dar um fim ao julgamento…

O veredito é o que encerra o caso.
O julgamento é a petição de miséria da inteligência, é o que encerra o pensamento.
Spinoza proclamava: compreender, não julgar.
Artaud (como Van Gogh, um “suicidado da sociedade”) declarou “guerra aos órgãos” para fazer um “corpo sem órgãos”, para acabar com o juízo de deus
“É que o juízo implica uma verdadeira organização dos corpos, através da qual ele age: os órgãos são juízes e julgados, e o juízo de deus é precisamente o poder de organizar ao infinito. Donde a relação do juízo com os órgãos dos sentidos. Inteiramente outro é o corpo do sistema físico; ele se subtrai tanto mais ao juízo quanto não é um ‘organismo’, estando privado dessa organização dos órgãos pela qual se julga e se é julgado. (…) Artaud apresenta esse ‘corpo sem órgãos’ que Deus nos roubou para introduzir o corpo organizado sem o qual o juízo não se poderia exercer. O corpo sem órgãos é um corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta pólos, zonas, limiares e gradientes. Uma poderosa vitalidade não-orgânica o atravessa.” (Deleuze, 1997; p.148)


… e compreender o corpo que não agüenta mais

O que é o corpo?
O corpo é aquele que não agüenta mais.
“Somos como personagens de Beckett, para os quais já é difícil andar de bicicleta, depois, difícil de andar, depois, difícil de simplesmente se arrastar, e depois ainda, de permancer sentado… Mesmo nas situações cada vez mais elementares, que exigem cada vez menos esforço, o corpo não aguenta mais. Tudo se passa como se ele não pudesse mais agir, não pudesse mais responder… o corpo é aquele que não aguenta mais.” (Lapoujade, 2002; p. 82 e ss)
E o que é que o corpo não agüenta mais?
“Ele não aguenta mais tudo aquilo que o coage, por fora e por dentro. A coação exterior do corpo desde tempos imemoriais foi descrita por Nietzsche em páginas admiráveis de Para a genealogia da moral, é o 'civilizatório' adestramento progressivo do animal-homem, a ferro e fogo, que resultou na forma-homem que conhecemos. Na esteira de Nietzsche, Foucault descreveu a modelagem do corpo moderno, sua docilização por meio das tecnologias disciplinares, que desde a revolução industrial otimizaram as forças do homem — e temos disso alguns ecos em Kafka também. Pois bem, o corpo não aguenta mais precisamente o adestramento e a disciplina. Com isto, ele também não aguenta mais o sistema de martírio e narcose que o cristianismo primeiro, e a medicina em seguida, elaboraram para lidar com a dor, um na sequência e no rastro do outro: culpabilização e patologização do sofrimento, insensibilização e negação do corpo.” (Pelbart, 2003; p. 45)

 

Os nossos problemas

Nos últimos dias, uma série de problemas complexos e perturbadores vêm proliferando nas páginas de nossa comunidade virtual, todos eles, sintomaticamente, envolvendo corpo e julgamento.
Da “condenação” da metamorfose corporal de Michael Jackson, à “indignação” com o lugar das drogas no mundo contemporâneo, sejam lícitas (ritalina), ilícitas (crack) ou um coquetel de “licitudes” e “ilicitudes” (viagra + ecstasy) – e, na distinção entre o lícito e o ilícito, já compramos pronto mais uma forma de julgamento que nos dispensa de pensar… O fato é que os receptores celulares não são capazes de fazer essa distinção!

Nesse ponto, é preciso ter o cuidado de não tomar essas minhas colocações como uma espécie de meta-julgamento de uma tendência alheia (que só seria dos outros) de tudo julgar. É a própria propensão (que é de todos nós) de tudo julgar que precisa ser compreendida! Este é meu único (arriscado) desejo, ao expor publicamente estas reflexões…
Precisamos reconhecer que há em nós uma espécie de mola que salta toda vez que nos deparamos com qualquer coisa que ameace a "organização" do mundo, que ameace nossa suposta confortável aposentadoria precoce da vida-pensamento!
E quanto mais julgamos, mais fazemos um “organismo”, mais sobrecarregamos o corpo e mais este corpo não agüenta mais…

Tentando não julgar para compreender, talvez possamos perceber nestas experimentações tão radicais com os corpos contemporâneos, o combate da vida, nestes corpos, contra tudo aquilo que os sobrecarrega… São estratégias de desmanchamento destes corpos. Modos desesperados de se fazer um corpo sem órgãos. Um combate, certamente, com risco de morte.
Tentando não julgar para compreender, talvez possamos perceber que este combate é o nosso!
Não se trata sequer de substituir o julgamento moral pela compaixão, por exemplo, com o “deformado” Michael Jackson ou com os drogados (ambos, como Artaud-Van Gogh, “suicidados da sociedade”). Este é o último avatar do julgamento e, no fundo, um modo de se dizer “eu não sou isso”, “eu não tenho nada a ver com isso”, “ eu apenas me condôo deste pobre miserável e de suas fraquezas”. Mas trata-se, sim, de “pôr-se ao lado” e perceber que só estamos diante de alguém que se feriu gravemente nas mesmas trincheiras em que combatemos, de alguém que eventualmente não combateu com suficiente prudência…


Mas como fazer um corpo sem órgãos sem ser tragado num buraco negro?

“Diante disso, seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é mais próprio, sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo. (…) para Nietzsche, todo sujeito vivo é primeiramente um sujeito afetado, um corpo que sofre de suas afecções, de seus encontros, da alteridade que o atinge, da multidão de estímulos e excitacões, que cabe a ele selecionar, evitar, escolher, acolher… Para continuar a ser afetado, mais e melhor, o sujeito precisa ficar atento às excitações que o afetam, e filtrá-las, rejeitando aquelas que o ameaçam em demasia. A aptidão de um ser vivo de permanecer aberto às afecções e à alteridade, ao estrangeiro, também depende da sua capacidade em evitar a violência que o destruiria de vez.” (Pelbart, 2003; p. 45-6)


A Rede como estratégia de desmanchamento do corpo

A Rede é outro modo de se livrar daquilo que nosso corpo não agüenta mais, fazendo um “corpo coletivo”.
Agora, só vou insinuar essa idéia…
Aqui, é a própria Rede que entra na roda do pensamento…

Iza percebe que as estratégias drogadictas de desmanchamento do corpo dizem respeito a certo ethos contemporâneo. Dênis Petuco jogou alguma luz sobre esta questão em outro post: Toxicomania – uma doença do consumo.
E a Rede como estratégia de desmanchamento do corpo, a que ethos corresponderia?


Um problema de amor e ódio, não de julgamento

“O combate não é um juízo de deus, mas uma maneira de acabar de vez com deus e com o juízo. Ninguém se desenvolve por juízo, mas por combate que não implica juízo algum. Cinco cacaterísticas pareceram opor a existência ao juízo: a crueldade contra o suplício infinito, o sono ou a embriaguez contra o sonho, a vitalidade contra a organização, a vontade de potência contra um querer-dominar, o combate contra a guerra. O que nos incomodava era que, renunciando ao juízo, tínhamos a impressão de nos privarmos de qualquer meio para estabelecer diferenças entre existentes, entre modos de existência, como se a partir daí tudo se equivalesse. Mas não é antes o juízo que supõe critérios preexistentes (valores superiores), e preexistentes desde sempre (no infinito do tempo), de tal maneira que não consegue apreender o que há de novo num existente, nem sequer pressentir a criação de um modo de existência? Um tal modo se cria vitalmente, através do combate, na insônia do sono, não sem certa crueldade contra si mesmo: nada de tudo isso resulta do juízo. O juízo impede a chegada de qualquer novo modo de existência. Pois este se cria por suas próprias forças, isto é, pelas forças que sabe captar, e vale por si mesmo, na medida em que faz existir a nova combinação. Talvez esteja aí o segredo: fazer existir, não julgar. Se julgar é tão repugnante, não é porque tudo se equivale, mas ao contrário porque tudo o que vale só pode fazer-se e distinguir-se desafiando o juízo. Qual juízo de perito, em arte, poderia incidir sobre a obra futura? Não temos por que julgar os demais existentes, mas sentir se eles nos convêm ou desconvêm, isto é, se nos trazem forças ou então nos remetem às misérias da guerra, às pobrezas do sonho, aos rigores da organização. Como disse Spinoza, é um problema de amor e ódio, não de juízo…” (Deleuze, 1997; p.153)

Deleuze, Gilles. “Para dar um fim ao juízo”, in Crítica e Clínica. São Paulo, Editora 34, 1997.

Lapoujade, David. "O corpo que não aguenta mais", in Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Lins, Daniel e Gadelha, Silvio (orgs.). Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002.

Pelbart, Peter Pál. “O corpo do informe”, in Vida Capital – ensaios de biopolítica. São Paulo, Iluminuras, 2003.