Diário de Classe – as possibilidades para além do controle
Vivemos sempre envoltos por tecnologias que ditam o cotidiano das nossas funções laborais.
É o cartão de ponto, é o bom dia aos colegas, é o relatório de atividades.
Talvez expressivo para refletir nessa data – 15 de Outubro – seja o papel do Diário de Classe que rodeia o imaginário do professorado. É claro que o diário de classe mudou muito desde quando os leitores da RedeHumaniza SUS eram educandos, mas com certeza o papel dele de controle, de definir o papel de quem educada e de quem é educado, ainda se faz presente.
É pertinente pensarmos nesse pequeno emaranhado de folhas como um instrumento potente para a mudança em nossas atividades na ponta dos serviços.
Em nossos cotidiano nos vemos limitados nas ações criativas, e isso é uma demanda da política pública. São os boletins eletrônicos, os relatórios de visita aos usuários atendidos pela Estratégia da Saúde da Família, são nossas campanhas de busca ativa na comunidade, são essas demandas que não podemos opinar que, muitas vezes, repetimos cotidianamente. Como interlocutores dessas políticas públicas e atores dessas ações, somos nós, na ponta dos serviços, que recebemos de cara a resposta da nossa 'clientela': não serve, não quero, está ruim.
É me equilibrando nessa dicotomia, ora se depara com um muro das lamentações, vez por outra com a análise de uma sociedade do controle, que me deparei com o livro Diário de Classe. O livro é de um multi-artista carioca Alex Frechette e me chamou a atenção desde o começo. Porque alguém faria uma narrativa sobre o ser professor e passaria 60 dias escrevendo a respeito? Como membro do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade nos deparamos com professores interessados em relatar a sua experiência, mas em sua maioria, estão presos dentro do seu cotidiano estafante e metas a serem cumpridas, e quase sempre estão dentro de um paradigma que é extravasado em seu discurso: teorias pedagógicas, escola nova, valorização, plano de carreira, medicalização; cada qual, com seus desejos e interesses, produzem narrativas que fecham uma história consistente.
Talvez seja essa consistência que precisa ser quebrada.
Quando gestores aparecem na mídia para mostrar como os dados gerados, por nós, em nosso cotidiano laboral, evidenciam o sucesso de determinada política pública, eles se esquecem que elas são sempre realizadas com dúvidas. Afinal, o aluno que não faz nada que o professor pede, mas ajuda os alunos na hora do lanche é um mau aluno? O senhor que passa todo dia para dar bom dia para os Agentes Comunitários de Saúde deve ser computado como acolhido?
Exemplos pequenos, mas que mostram como o tema é pertinente. A cada nova política pública, muitas vezes somos convocados a responder pela mesma. E responder a uma pergunta é, quase sempre, uma adequação da fala e do pensamento.
É no pressuposto de um discurso que não se fecha que o texto de Alex é poderoso, o Diário de Classe é uma escrita flanêur, como ele próprio informa no Prefácio do livro: "Escrever exatamente nesse período foi uma boa maneira de avaliar o meu envolvimento, minhas expectativas e perspectivas de professor novato, além de ser uma forma direta de forçar minha maior dedicação às artes visuais".
É o ar novato que talvez incomode a um pensamento vertical. Ou ainda, um ar que ainda quer ser novato, o que experimenta sensações, esquemas, ações e pensamentos.
Com a guinada neoliberal do nosso pensamento, e de todos nós, aceitamos por completo que as políticas públicas nascem junto com as metas e resultados esperados. E é nesse sentido que vamos perdendo toda a real potência da vida, do cotidiano onde os profissionais tem dúvidas, receios, acertos, certezas, erros, vitórias.
É preciso estar atento ao texto invisível que vem junto com os números e parcas linhas dos relatos de atividades e laudos de encaminhamento. Números e palavras são intermediários para que profissionais possam dialogar e se relacionar. Ou deveriam ser.
Quando trabalhamos visando uma meta, é nossa atividade que se inverte, e perdemos o potencial criativo de nossa própria ação que pode mudar e criar no percurso.
Para um professor essa parece questão sem polêmica, como relata Frechette:
"Mesmo com o planejamento das aulas em mãos, com o material didático já preparado, com tudo separado, coletado e estudado, com as possibilidades de abordagem do mesmo tema já pensadas, às vezes um fenômeno inesperado acontece. A aula simplesmente não rende. As crianças não se sentem motivadas, fazem exercício de qualquer maneira e, apesar da insistência, os trabalhos não as levam muito adiante. Aí é que uma das coisas mais valiosas que aprendi nesta profissão se revela: a capacidade de improvisação do professor."
A capacidade de improvisar não deve ser encarada como resposta a uma falta, da ausência de material ou de condições, mas como ação positiva e potente dos trabalhadores que na ponta dos serviços traduzem e mediam cotidianamente as políticas públicas para os reais beneficiários das mesmas.
O educar – assim como o viver – é artesanato, que acontece no cotidiano vivido e não naquele relatado e auditado.
Fiquei curioso em encontrar mais material como esse, desses diários de classe e prontuários de atendimento que mostram a vida por trás de números e metas.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Querido Rui,
Acho que você fala exatamente do trabalho vivo em ato. Aquele que não se restringe à mera repetição e reprodução cotidiana.
Aí é que se dá o acontecimento do cuidado em saúde, o devir de outros modos. O que faz a política nacional de humanização, aquela sem portarias ou decretos e, por isto mesmo, plena de efetividade.
Teu post me fez lembrar textos incríveis sobre o trabalho de humanização:
https://www.scielo.br/pdf/csc/v10n3/a14v10n3
A humanização como dimensão pública das políticas de saúde
e outro:
Humanização em Saúde: um novo modismo?
beijos,
Iza