Liberdade e determinismo.

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Diferença entre o real e a realidade: Implicações para a ideia de liberdade.

 

A integralidade do real tem implicações que ultrapassam em muito o universo espelhado em nossa mente. Nós vivemos em uma espécie de cômodo perceptivo. O que percebemos como sendo “a” realidade é um mero recorte do real. A realidade se constituí na soma das sensações que podemos processar em cada instante de nossa autoconsciência.

Há reconhecidamente uma disjunção entre a integralidade do real e aquilo que cada um de nós pode resumir como a sua realidade em termos conceituais, epistêmicos e ontológicos. Então, todo o universo em nós é fragmento, fração e parte.

Disso decorre que nossa ideia de volição, desejo, liberdade e autodeterminação são contingentes. Ou seja, só existem no interior de nossa limitada perspectiva. O alcance preciso dos efeitos de nossas “escolhas”, desejos e expectativas são, para nós, definitivamente indetermináveis.               

Embora a nossa história como espécie tenha favorecido a sobrevivência daqueles que se habituaram a relacionar os eventos passados, de acordo com a sua frequência, à expectativa do que irá acontecer, isso não implica na plena adequação de nossas ações aos nossos desígnios. Diligência, prudência, acuro, cuidado e zelo tem seu peso. Porém, esses modos de agir consideram somente alguns dos fatores integrados (da realidade humanamente percebida) aos demais determinantes (imperceptíveis e incalculáveis) do real.

Em nossa realidade ponderamos sobre as variáveis e buscamos direcionar o curso da existência com maior ou menor grau de eficácia. Mas como nossa realidade é muito menor do que o real, nada garante que, ao pensarmos estar construindo a realidade que desejamos, na verdade possamos estar apenas efetivando nossa peculiaridade no contexto mais amplo do real. Daí emerge o que chamamos de os efeitos não desejados da ação.

É improvável que, ao considerar a realidade em nossa mente como espelho fiel do real, estejamos alcançando a transcendência a partir de nossa imanência. É mais plausível que a imanência de nossa realidade permita o contato com o real a partir da indeterminação, incerteza e mistério. Ou seja, do saber que não sabemos. Primeira e mais fundamental intuição do processo de aprendizado, esse saber que não sabemos é o saber por excelência. Um saber que concorda tanto com a realidade que concebemos, quanto com a totalidade do real que ignoramos.

Esse saber é o contrário do pressuposto filosófico de que em nossa mente, através da racionalidade diligente e rigorosa, possamos perceber a unidade do real e a integralidade da verdade. Não é que a verdade não exista, ou que tudo seja relativo. Em nossa percepção tudo é relativo e integrado ao real que é imperceptível para nós. A verdade está sempre além de nós, e ainda que seja a realidade, onde estamos imersos, se estende para além do que podemos perceber – incluí “o” real.

O conjunto dos fenômenos do real incluí o movimento da matéria através da dimensão temporal. Para nós a realidade aparece puntiforme, com o presente instantâneo se formando a partir do avanço para o futuro inexistente, ao passo em que, o passado imediatamente após vivenciado desaparece.

No pequeno livro “Intuição do instante” de Gaston Bachelard, aparece a sugestão de que a imanência implicada na percepção do tempo como instantes descontínuos pode ser um portal para a transcendência. Uma unidade a partir da descontinuidade do fenômeno da consciência parece emergir da reiteração de nosso contato puntiforme com o real – contato de onde vamos instituindo nossa realidade.

Se a consciência é a soma das sinapses, em infinitesimais fluxos elétricos no cérebro, o real é a absoluta e integral presença de todo o tempo. É o que Albert Einstein percebe ao conceber o tempo como parte de uma geometria que integra nossa noção de espaço. A relatividade do tempo, na percepção de cada observador, (de acordo com a velocidade em que se movimenta) expressa o fato incontestável de que o passado não desaparece, e que o futuro não está por ser erigido de acordo com a eficácia de nossas vontades. No tempo einsteiniano o real tem uma arquitetura única onde o agora é um aspecto menor e relativo da totalidade que inclui passado, presente e futuro. O espaço-tempo, desse modo, construí uma topologia.

As sociedades liberais, conservadoras, progressistas ou humanistas se estruturam a partir do mito de que o passado desaparece como real e permanece como realidade a ser evocada como memória, do mesmo modo que, o futuro ainda não existe, embora possa ser projetado e executado. É isso que sustenta os mitos do progresso, tanto quanto o mito da meritocracia. A ideia de que o homem pode fazer a si mesmo não passa de uma superstição de fundo religioso. Nos significados mais ingênuos de livre-arbítrio e meritocracia está implícita a ideia de pecado original e verdade revelada.

Em nossa noção de realidade, nos parece que o futuro e o passado movem-se da virtualidade para o desaparecimento, após o instante presente. No entanto as instancias do tempo são, de fato, parte integral do real. Assim, o presente que constitui o maior elemento de nossa realidade é apenas um elemento episódico do real. É um recorte, uma vez que o espaço-tempo é um todo geométrico, topológico e extenso.

Poderíamos concluir que não existe, então, liberdade. E que, no sentido de autodeterminação unilateral, a humanidade apenas faz parte do real – não se determina, mas sim, se realiza. Desse modo, provavelmente, falar de liberdade seja um exagero, pois pressupõe um papel de determinante a um componente, entre tantos outros desconhecidos, ou imperceptíveis, do real.

O paradoxo é que apenas quando me disponho a aceitar a diferença entre “a” realidade e “o” real que se torna possível que eu saiba que – ainda que o real me determine – é na realidade que eu posso me perceber como efetivando, realizando o aspecto de mim mesmo que é, simultaneamente, real e realidade. Eu só posso falar em liberdade no sentido em que posso escolher efetivar plenamente a mim mesmo. Encontrar a plena realização do que sou é um ato livre. Ainda que seja para realizar um ou, “o” destino.

A minha escolha, liberdade ou autodeterminação só pode ser exercitada na medida em que me liberto das amarras perceptivas. Sou livre, assim, na medida em que eu transcenda as limitações de percepção em minha imanência.

Só podemos exercitar alguma liberdade na consciência trágica de que não a possuímos. Mas a tragédia e a alegria não são irreconciliáveis. O trágico pode ser uma celebração e uma dança. O fato é que o real pode ser acolhido na realidade. Podemos ser tomados livremente pelo acontecimento e vivenciar o tempo como extensão no espaço. E do determinismo inerente ao todo, implicado no conceito de real, experimentarmos a liberdade em nossa realidade.

Isso é incognoscível na medida que está no interior da imanência que nos limita, mas também nos permite o acesso a transcendência que nos ultrapassa. É um fato sem sentido de onde partimos para construir todos os sentidos.