A CLASSE OPERÁRIA VAI AO PARAÍSO – UMA REFLEXÃO DOS PONTOS MAIS MARCANTES DO FILME

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A julgar pelo título, o filme “A Classe Operária Vai Ao Paraíso” prometia um final melhor. Durante o tempo de filme imaginei, algumas vezes, que talvez aconteceria alguma forte mudança no andar da história dos trabalhadores. De fato, muitas mudanças aconteceram, e apesar do filme ser antigo (1971) o chão de fábrica, o nível operacional não deixaram de existir até hoje, nem as lutas por direitos e melhorias nas condições de trabalho, mesmo que sejam a passos curtos.

De uma maneira geral, o filme chamou minha atenção por dar protagonismo à história de vida de um trabalhador – Lulu Massa – mas sem tirá-lo de seu contexto, de um coletivo de trabalhadores, e possibilitando mostrar a vida dele fora do ambiente de trabalho – e quais as consequências e implicações que ele levava do trabalho para casa, e por toda a sua vida, em todas as outras dimensões que ela existe – família, saúde, relacionamentos, principalmente.

Lulu é um operário exemplar, assim começa o filme. Ele fala que trabalha faz 15 anos na mesma fábrica, o que significa que desde sua adolescência ele faz aquele trabalho – no começo do filme ele conta ter pouco mais de trinta anos (não me recordo a idade exata). Era Lulu quem conseguia fazer mais peças por hora na fábrica, sendo ele o operário que tinha o ritmo a ser seguido, e, pelo que pude perceber, os demais operários eram mais exigidos para que alcançassem uma meta de produção/hora igual a de Lulu. Mesmo assim, Lulu não era elogiado, nem querido, posso dizer que também não demonstrava felicidade alguma. Seus colegas de trabalho o provocavam e xingavam por ser ele quem fazia (mesmo que sem querer) todos os demais serem mais exigidos, e os próprios fiscais da fábrica também nunca cansavam de exigir mais dele, falando que sempre era possível trabalhar num ritmo melhor – mais rápido para produzir mais peças/hora.

Lulu não demostra estar feliz no trabalho, mas contenta-se em conseguir fazê-lo. Quando recebe a tarefa de treinar – em um dia apenas – dois novos funcionários, diz que “até um macaco pode fazer este trabalho”, nos mostrando aquilo que podemos ver ao longo do filme – estamos diante de um trabalho extremamente repetitivo, enfadonho e provavelmente, muito adoecedor para o corpo e para a saúde mental. Além desta, as frases que ele diz ao longo do filme são bastante marcantes. No início ele diz, em casa, para sua companheira, que “o indivíduo é como uma fábrica” e em outro momento, já na fábrica, diz que para fazer o que faz imagina estar fazendo sexo. Em ambas as situações podemos pensar que para conseguir se sujeitar ao trabalho enfadonho e repetitivo Lulu tenta, a todo custo, controlar seus pensamentos, de modo a fazê-lo acreditar que aquilo é prazeroso, que aquilo é o que tem que ser feito, que as coisas são assim, – ele mesmo afirma para si, algumas vezes, que para trabalhar o necessário é “eu me concentro, me concentro”. Esta necessidade de controlar seus pensamentos e tentar ter algum prazer ou tentar achar algum significado ou sentido no trabalho que faz começa a nos dar pistas, ou a nos fazer criar hipóteses, de que seu limite subjetivo em aguentar aquelas tarefas já foi ultrapassado, e os sintomas já estavam presentes, apenas vão se mostrando mais e mais claros ao longo do tempo. De acordo com o autor Dejours, o assujeitamento – que podemos ver no filme – é um processo que leva ao adoecimento mental.

Algo que considerei importante e não queria deixar de comentar foi a cena onde Lulu reclama para sua companheira que ela não sabe o quanto ele sofre no trabalho – diz a ela que eles [seus colegas de trabalho] o “atacam, me cospem, me contestam” e em que lá no salão de cabeleireiro (onde ela trabalha) acha que as coisas devem ser bem mais fáceis. Se as coisas no salão são mais fáceis, isso o filme em nenhum momento parece concordar, mas a questão aqui é outra: Lulu, apesar de seu sofrimento e de ter se sujeitado a uma mesma fábrica e a um mesmo trabalho a vida inteira ainda consegue verbalizar o sofrimento. Lulu não se institucionalizou a ponto de internalizar e dar explicações a tudo – e a ponto de não mais conseguir enxergar seu sofrimento. Essa é a lucidez do personagem. Além disso, Lulu consegue verbalizar seu sofrimento com sua companheira – e colocar em palavras – num discurso – aquilo que se sente é algo muito poderoso na defesa dos males que tocam a todos nós. Ainda tem outra questão: Lulu, nesta cena e em outras, reclama da sua vida e da sua condição.  A reclamação é uma ferramenta importante e necessária em qualquer condição, seja no trabalho ou fora dela (em outras instituições). Com a reclamação podemos nos juntar a pessoas que nós elegemos para compartilhar com eles nossa dor. A reclamação, apesar de ser considerada, em geral, apenas uma fofoca, algo baixo, indireto e muitas vezes não mostrar uma saída para o sofrimento, nos faz eleger pessoas com quem queremos compartilhar aquilo que nos incomoda sendo, talvez, um dispositivo muito importante a ser observado dentro das instituições, e um poderoso aliado no momento de dor e sofrimento mental – nos permitindo verbalizar e coletivizar o que não aceitamos, mesmo sem que nossos interlocutores não concordem ou não compartilhem no ponto de vista dito.

Lulu, num dia comum, coloca a mão dentro da máquina para destravar uma peça e perde o dedo indicador. Em pouco tempo volta a trabalhar e um dos fiscais diz que a produção da fábrica caiu em 7% por conta da ausência dele. Então fica claro que a saudades que a fábrica tem dele são apenas dos 7% que ele produzia. Esse acidente não é o primeiro problema de saúde que ele tem em decorrência do trabalho – nem ele é o único, outros têm problemas de saúde também. Antes, ele já teve duas intoxicações causadas por tinta, e sofre de úlcera e outras dores. Fica bem claro que o corpo não é o mesmo, seu metabolismo parece alterado e o trabalho foi o fator determinante para isso. Sua companheira reclama que a vida sexual não existe mais e que ela toma pílulas a três meses para nada – Lulu sabe disso e diz que não tem disposição quando está em casa, mas que quando está na fábrica é diferente. A fábrica parece dar alguma adrenalina, necessária para que o trabalho seja feito – mas extremamente danosa para o corpo (e claro para a mente, que não está separada deste) a longo prazo.

O acidente que o fez perder o dedo faz Lulu dar mais atenção a algumas coisas às quais ele já vinha percebendo, mas como nada acontecia, parecia levar a vida como podia. Agora Lulu vê com mais clareza o quanto o trabalho que faz é adoecedor. E reflete sobre o que dizem os estudantes e sindicalistas que gritam na frente dos portões das fábricas quando afirmam que “hoje a luz do dia não brilhará para vocês [operários]”; “quando saírem da fábrica hoje já estará escuro”. Deste momento em diante, Lulu passa a ser mais atuante nas questões que envolvem os direitos dos operários. A identidade de Lulu sofre alguma mudança depois do acidente e da perda de um membro. E Lulu passa a perceber que tem que mudar o jeito de viver, que precisa fazer diferente a partir de então, que uma mudança se impõem, mesmo que não saiba como fazê-la ainda – em certo momento diz “que vida é essa?”.

Provavelmente uma das cenas mais importantes – e marcantes, em minha opinião – é quando Lulu vai a um lugar que se assemelha à um hospital psiquiátrico, onde encontra um senhor e antigo amigo chamado Militina – que era operário da fábrica onde trabalha Lulu, mas agora estava internado. No local, Militina fala para Lulu que ali todos os loucos trabalhavam em alguma coisa, eram contadores, operários, etc…, assim deixando clara a forte influência do trabalho no adoecimento mental dos que estavam internados. Lulu pergunta para Militina se ele saberia dizer quando começou a perceber que estava ficando louco. E a resposta assusta Lulu: foi quando começou a perceber que tinha que colocar os talheres alinhados, sempre, da mesma forma como deixavam tudo alinhado no posto de trabalho. Sintoma que Lulu já demostrara ter, em dois momentos do filme (com os talheres também, e com canetas).

Mais tarde, Lulu volta a conversar com Militina no mesmo lugar, e duas falas bastante importantes acontecem, quando Militina afirma que “se queres ficar louco, volta para a fábrica. Foi na fábrica que enlouqueci”; e conta também que chegou a enforcar um engenheiro da fábrica porque queria saber para que serviam as peças que eles fabricavam aos montes, e disse que “um homem tem direito de saber o que faz”, e que, do contrário, isso sim seria loucura. A fala de Militina trouxe duas coisas – o quanto alienado é o trabalho que fazem, e que mesmo os considerados loucos têm uma opinião sobre sua “loucura”, sobre seu diagnóstico. Diz-se que é alienado é aquele que não se pertence, que não é dono de si. Um trabalho que não pertence a quem o realiza é um trabalho que podemos chamar de alienado. Militina percebeu isso, mesmo sem saber o conceito. E percebeu também que o trabalho foi decisivo em seu adoecimento. Mesmo que provavelmente digam que não (não sabemos mais da história deste personagem), ainda podemos lembrar que Foucault afirma que é a pessoa que age, que atua, que sofre, a melhor para dizer onde e como sua dor é sentida.

Nesta fábrica, como na maioria delas, tudo é decidido sem a participação do trabalhador/operário, nada podem fazer para mudar isso, apenas aceitar que é o melhor para todos – e claro, vão resistir. Pode-se encontrar um fator importante a ser pensado bem aqui: é o quanto se pode mandar, – alterar, mudar alguma coisa no seu trabalho. Pode-se fazer um trabalho alienado sem adoecer, mas dificilmente isso ocorre quando nada se pode fazer para impedir que o limite subjetivo de cada um seja ultrapassado. O trabalho adoecedor é aquele onde o trabalhador é assujeitado, como afirma Dejours; e onde o limite subjetivo do sujeito é ultrapassado.

Lulu começa a perceber isso com maior clareza depois de seu acidente, embora desde o início ele não demostrava ser passivo. Lulu está no centro de um trabalho árduo e penoso e onde há muita dominação e resistência – como em toda forma de trabalho, mas que chega ao limite nestas condições mostradas pelo filme. Em determinado discurso, Lulu fala que o operário “é como uma máquina, uma rosca, uma roldana…” mas que não estava funcionando mais e diferente da máquina, não poderia ser concertado. Diferente da máquina, Lulu percebeu que os trabalhadores estavam perdendo algo que não podia ser substituído, concertado, devolvido. Seria a vida? O tempo? A identidade? A lucidez? Provavelmente todos, incluindo a dignidade que é algo que nunca será substituída por nada. Vemos com clareza a redução de sujeitos à objetos – processo de objetificação dos sujeitos – ou de reificação (nos termos de Marx), ou ainda assujeitamento (Dejours).

A força de trabalho é a única mercadoria capaz de ser explorada. E no filme é bastante visível esta exploração. As demais coisas que fazem parte daquele ambiente são inanimadas – as peças, as máquinas, a fábrica. É o ser humano que está no centro deste filme. Os estudantes e sindicalistas alertam claramente que os trabalhadores são explorados – com seus megafones alertam que antigamente os operários produziam 1000 peças por dia e que atualmente fazem 3000 e continuam ganhando o mesmo salário.

Na fábrica, além dos operários saberem pouco sobre o que produzem, Lulu também nos lembra que ele não conhece os donos. A hierarquia da fábrica é bem demarcada – os fiscais usam pranchetas e jalecos, e estão sempre com as canetas em mãos para anotarem e calcularem os ritmos de cada operário. Mas quando lhes convinha, alguns deles falavam que também eram trabalhadores como qualquer um, uma vez que estavam a serviço daqueles donos que ninguém conhecia. Em determinada cena, Lulu é alertado que precisa trabalhar mais rápido, mas ele se permite – ou cria coragem – para responder ao fiscal que não vai fazê-lo porque “não tinha vontade”.

Em determinado momento, no meio do filme, um médico avalia Lulu dentro da empresa. Avalia sua percepção sobre algumas figuras. Lulu responde todas sem dificuldade. A avaliação é tão boba que Lulu já sabe o que o médico vai perguntar em seguida e, um de seus colegas de trabalho olha de fora do ambiente, zombando do teste. De fato, a avaliação é o exemplo do que não deve ser feito em saúde do trabalhador – e provavelmente na área da saúde como um todo. Apesar da cena ser curta, em momento algum o médico se preocupa em perguntar o que incomoda, aflige, causa sofrimento à Lulu. O procedimento é aplicado nos operários como se aplicaria em qualquer outra coisa. O médico não perguntou nada sobre o contexto, nada sobre o trabalho, e apesar de perguntar sobre o dedo que Lulu perdeu, fez uma interpretação totalmente fechada, baseada apenas nas suas deduções e num saber desconectado do sujeito que sofre, como se a verdade estivesse dada pela teoria ou pelo diploma que lhe daria poder para afirmá-la – tinham muitas mais perguntas que poderiam ser feitas sobre o dedo e sobre Lulu em geral. Mas provavelmente o avaliador estava a serviço de uma lógica dominante – a da fábrica – e não estava querendo questionar a realidade. Aparentemente o médico não era capaz de perceber nada, alguém fechado completamente em seus procedimentos, e sem ter a capacidade de considerar que havia uma pessoa em sua frente.

É bastante interessante perceber a mudança de Lulu, embora lenta e gradual, ela vai se tornando mais visível ao longo do filme. Lulu começa a tomar consciência da sua miséria, da sua condição. Quando está em casa, ele olha para alguns objetos e começa a calcular quantas horas de trabalho teve que fazer para comprá-lo. Outra cena marcante ocorre quando Lulu é despedido e grita, em frente ao portão da fábrica segurando a carta laranja (de demissão) o que poderia fazer agora, – já que um homem como ele não tinha mãe para voltar, não tinha outra fábrica para ir, não tinha como sustentar o filho nem o enteado, ficando uma sensação de desvalorização total. O que mais um homem como ele poderia fazer?

A demissão de Lulu também nos trás algumas questões. A primeira é da ajuda que ele tem a partir da luta coletiva. Um de seus colegas vai até sua casa e grita que ele tinha virado um símbolo. Mas tarde, avisam-no que ele será readmitido ao trabalho, graças à luta coletiva, e que isso era inédito pois era a “primeira vez que readmitem um funcionário demitido por causas políticas”. A segunda questão começa quando perguntam para ele se “está contente?”. Lulu fica calado em princípio, depois diz que sim, mas parece ter dito apenas para agradar aos colegas e à companheira. Percebe-se que ele não estava feliz em voltar ao trabalho, mas o que mais um homem como ele poderia fazer? Apesar da luta coletiva afirmar, no filme, que queria uma reabilitação do sistema, o paraíso ainda não chegaria para ninguém. Lulu volta a trabalhar, a fábrica os coloca numa linha de produção. E, embora alteraram-se algumas condições de trabalho, foram poucas, e não foram o suficiente para pensarmos em saúde, seja de quem for. Continuam alienados, talvez levemente menos, talvez um pouco mais unidos, mas sem qualquer capacidade de mandar em nada. A luta continua.

No fim, Lulu conta para seus colegas que sonhava com todos eles indo para num lugar – para loucos. Lulu passa boa parte do filme buscando uma resposta, e a loucura é uma de suas questões centrais. Ele é um protagonista que pergunta, que questiona. Lulu tem medo do futuro, se vê louco. Via no seu amigo Militina o seu futuro. O espectador não sabe o que será dele. Não sabemos se a capacidade dele de enxergar sua condição o salvará, ou se ele já estava quase se tornando “um animal”, alguém que estava deixando de sentir e que “quando estava feito, estava feito” como disse em determinado momento – mas sempre se resiste, tratando-se de ser humano. O filme é pessimista, a história nos direitos pouco avançou, mas coloca-se no coletivo (de trabalhadores, sindicalistas e estudantes, no caso do filme) uma possível resposta e uma salvação às condições precárias de trabalho.(texto escrito em 2017)filme psi social do trab