A face genocida de nossa cultura

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É preciso pensar na violência contra a maioria da população na história do Brasil, na atual pandemia e atentos ao que virá após a contagem final dos mortos pela Covid-19 no contexto de uma grande depressão econômica no futuro próximo. Os fenômenos da crise econômica, da crise política e da crise sanitária estão entrelaçados no presente e no desenrolar histórico do século XXI

O descaso com as mortes pela Covid-19 está diretamente relacionado ao percentual de apoio ao governo Bolsonaro. No entanto, não é possível que esse fenômeno novo não tenha um lastro profundo em nossa cultura. Uma contagem de vítimas da ordem das dezenas de milhares de mortos (que ninguém sabe até que nível irá subir antes do surto terminar) não pode ser ignorada do modo como vem sendo, por pelo menos 30 milhões de adultos.

Os apoiadores de Bolsonaro formam a massa crítica de pessoas que sempre apoiaram ou foram omissos em relação aos massacres e guerras de extermínio e opressão que sempre aconteceram desde a chegada dos europeus ao litoral do território brasileiro. Como veremos logo abaixo, esse apoio se manifesta desde sempre mesmo em uma parcela significativa das próprias vítimas.

Não importa se por questões religiosas, juntamente com a ignorância e a falta de educação para um mínimo de rigor científico, o fato é que há, entre os que ignoram as evidências, milhões de pessoas pobres que são vítimas desse descaso pela vida que é histórico e reiterado cotidianamente em nosso país. Ou seja, milhões estão tendo uma atitude temerária diante da necessidade urgente do cuidado e da  preservação da vida exatamente porque nunca tiveram suas vidas valorizadas.

Uma parte da população brasileira entrou numa rota inconsciente de suicídio coletivo. Depois de a pandemia consumar essa postura desesperada, teremos a reação imprevisível dos sobreviventes. O trauma e suas consequências serão inevitáveis e de extensão muito difícil de estimar.

Como esse povo oprimido por séculos irá reagir a política de fazer e deixar morrer de um governo que recebeu quase 60 milhões de votos?

A Covid-19 é um salto no processo de dissolução da coesão social em nosso país. No entanto, mesmo antes da pandemia, nós já estávamos nessa rota de autodestruição.

Em minha experiência no trabalho em saúde mental sempre vivenciei situações de desespero com a existência. Em geral, sua etiologia se entrelaça, entre outros fatores, com histórias de vida em condições cronicamente trágicas. São casos em que o futuro sem dor e muito sofrimento simplesmente desapareceu do horizonte.

Essa situação singular de sofrimento psíquico parece muito com a situação que vemos acontecer ao corpo social brasileiro. Não é porque foi naturalizada ao longo de nossa história que toda essa violência étnica e de classe social não vá nos levar a um caos e a uma anomia social jamais vista ou sequer imaginada.

Como já não somos uma nação no sentido do espírito coletivo, marchamos para a dissolução formal do Brasil como um Estado nação. Parece um exagero de perspectiva. No entanto, cada vez mais esse rumo se configura como um destino diante de nossa incapacidade de mudar.