Toda a diversidade das condições e dos modos de ser não são uma evidência conclusiva a favor do individualismo. Há uma igualdade que se sobrepõem a nossas diferenças individuais, especificamente sobre a ideia de identidade e da propriedade de si mesmo. Essa me parece uma objeção válida aos princípios do anarquismo libertário que vem se aliando ao conservadorismo, inclusive o religioso, para atacar as teses da igualdade e da justiça social.
As poucas pessoas mais ricas do mundo e os muitos miseráveis compartilham uma condição comum fundamental. Em essência, a igualdade dos seres humanos é anterior ao que nos diferencia. O indivíduo não consiste na única realidade fundamental. Há uma realidade precedente que determina os fundamentos do mundo e encarcera o indivíduo no interior das consequências da gênese dos fundamentos da realidade.
Estamos, nós todos e as coisas inanimadas, imersos no fluxo do tempo. Essa me parece a igualdade fundamental. E, diante da eternidade, existir por algumas décadas, na miséria das sarjetas ou no luxo suntuoso dos palácios, conduz todos ao inexorável destino de esvair-se do tempo para alguma coisa impensável que chamamos de o pós-vida. Imaginamos a existência após a morte como uma continuação da única vida que conhecemos. Mas de modo mais específico, embora inimaginável, nos referimos a morte como um tempo depois do tempo. Nesse não-tempo e não- lugar, o que quer que exista – o nada ou qualquer coisa – está além de qualquer possibilidade de nossa concepção.
As grades do fluxo temporal delimitam nossa apreensão do mundo e dão forma a todo o sentido que somos capazes de formular. Esse nada surdo e impronunciável é a fonte do significado de todos os sentidos que produzimos. É em oposição que nossas categorias do pensamento se estruturam. A abundância só é significativa porque conhecemos a escassez. A riqueza deve seu sabor a experiência ancestral da privação e da miséria. As coisas não têm sentido em si mesmas. O movimento é o lar do significado.
É desse modo que a idéia de indivíduo, pessoa, ser que pensa e se autodetermina só faz sentido ao longo de uma linha temporal onde a ausência e a presença do ser se alternam constantemente. Os poucos momentos em que temos a firme sensação de possuirmos a nós mesmos, são aqueles em que menos estamos no controle. Paradoxalmente, quando sentimos que estamos escolhendo, tomando decisões e controlando nossas vidas, apenas respondemos aos estímulos e roteiros que determinam nossas ações e julgamentos.
Não se trata da dicotomia indivíduo versus coletivismo. O fato é que a noção de indivíduo é tão etérea e sua vacuidade tão fantasmagórica que não podemos saber quem e quantos somos no interior de nossa subjetividade. Existimos num interior, simultâneamente vasto e opressivo, que resumimos, em meio ao caos das inclinações que nos habitam, nos gestos que nos definem.
Ainda assim, gestos não são o que somos. Nossas ações realizam o roteiro que resume as infinitas possibilidades de ser que existem em potência. O fluxo do tempo cristaliza como a fronteira performática que nos define.
O indivíduo é sempre a impressão de um acontecimento fortuito, em meio a infindáveis possibilidades, que não se realizaram. A identidade é mais como um acidente que em nossa percepção pode ser tido como o destino inescapável ou o acidente inesperado.
Para além da filosofia aristotélica, nosso mundo tem se mostrado mais inusitado e complexo do que a lógica clássica permite inferir. Desde a teoria da relatividade que os fundamentos da matéria vêm se mostrando mais etéreos, confusos e distantes da metafísica judaico cristâ. A mecânica quântica lida com conceitos que na física clássica seriam considerados meros absurdos. Ainda assim, eles decorrem de fenômenos amplamente testados em laboratório e em observações astronômicas do espaço profundo.
Essas evidências apontam para um multiverso de infinitas possibilidades, hipóteses exóticas de que vivemos em uma simulação holográfica – gerada fora do espaço tempo, além da relatividade do tempo, segundo a perspectiva de observadores em velocidades diferentes.
O pressupostos filosóficos da teoria liberal operam segundo a lógica clássica e nisso não são diferentes de muitas visões de esquerda que também partem do iluminismo e das premissas do positivismo lógico. Bem, desde 1905 temos observado um mundo mais adequado a formulações da lógica paraconsistente. O mundo da relatividade de Einstein, do princípio da incerteza de Heisenberg e das quase verdades de Newton da Costa em que a noção de indivíduo autodeterminado vai migrando para o terreno mítico.
Basear toda a estruturação da realidade social, política e econômica no pressuposto de uma racionalidade lógica clássica é um salto de fé e ingenuidade que já não responde a complexidade do real. As teorias sociais e econômicas, mas especialmente o modelo antropológico, que emerge no ocidente com o iluminismo têm no anarcocapitalismo o exemplo típico de uma filosofia anacrônica.