A Soma de Todos os Medos

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Desde que nos tornamos capazes de interagir com o fenômeno do fogo, há cerca de um milhão de anos, nossa relação com os demais seres vivos e com o ambiente foi transformada. Essa postura de objetificação dos fenômenos e dos outros seres nos levou a conceber a nós mesmos como algo separado do mundo.

A lenta formação da consciência sobre nosso próprio olhar forçou um deslocamento subjetivo. Ao nos tornarmos cada vez mais capazes de nos percebermos percebendo a realidade, operamos um deslocamento da nossa subjetividade para fora do mundo material, projetando-a no real. Essa é a consciência em termos espaciais, geográficos e, por fim, cósmicos.

Até a revolução tecnológica, verificamos uma certa estabilidade na relação dos seres humanos com o ambiente. Por dezenas de milhares de anos, antes da agricultura, o equilíbrio tenso foi a marca de nossa existência. Fome, doenças, rigor climático e predadores ameaçaram nossas frágeis estruturas sociais, limitando a expectativa de vida e o crescimento populacional.

Essa situação de equilíbrio se alterou com o desenvolvimento das técnicas agrícolas. Abandonar a rica dieta onívora dos caçadores-coletores significou perder algum grau de qualidade de vida. Contudo, as monoculturas permitiram que mais humanos nascessem e se reproduzissem, possibilitando a formação das civilizações com sua tendência à padronização dos modos de vida.

Ainda assim, esses milhares de anos de civilizações agrícolas impuseram um novo padrão de limitações para nossas existências: ainda fome, doenças e rigor climático, mas, no lugar dos predadores, surgiram as crises econômicas e as guerras.

Tudo isso começou a mudar muito aceleradamente a partir da Primeira Revolução Industrial. Com o desenvolvimento dos métodos científicos — que, por sua vez, decorreram de modos de pensar o lugar da humanidade no cosmos por meio da filosofia e da teologia — tornamo-nos muito poderosos enquanto espécie. Nossa capacidade de transformar e fazer circular recursos naturais na forma de mercadorias foi ampliada drasticamente.

De repente, alimentos, roupas, abrigo, transporte, armas e reconhecimento social se tornaram acessíveis a todos que pudessem ter acesso à mercadoria mutante chamada dinheiro. A produção industrial tornou de baixo custo os bens pelos quais a humanidade lutou arduamente por centenas de milhares de anos.

Entretanto, nossa estrutura psíquica ainda está sob o impacto imemorial das condições nas quais existimos pela maior parte do tempo. É comum pensar a humanidade como um ser humano individual que, em seus anos de infância, vive a menor parte de sua existência.

Porém, o caso da espécie é outro. Considerando nossa existência, a humanidade se assemelha a alguém que viveu 90 anos sob um modo de vida e, então, precisa se adaptar a grandes transformações em apenas alguns meses ou dias. A diferença é que não sabemos a expectativa de vida de uma espécie autoconsciente. Tubarões são conscientes do mundo e de si mesmos em alguma medida, mas não parecem estar conscientes dessa consciência da forma como nós estamos. Mas eles já existem na Terra há 450 milhões de anos. Ou seja, por não termos outro caso comparável, não há dados estatísticos para calcularmos nossa expectativa de vida como espécie ou as probabilidades de nossa continuidade. Comparados a outras espécies somos bem jovens no bioma terrestre.

Considerando tudo isso, podemos responder à questão posta pelos anciãos dos povos originários das Américas em seu encontro com a civilização europeia: porque, tendo capacidade de produção de alimentos e bens suficientes para todos, as sociedades europeias eram marcadas pela pobreza e pela acumulação desigual de riqueza?

De lá para cá, o fenômeno de vivermos uma disruptura crescente de nossas capacidades se acentuou. Nos últimos dois séculos, o mundo tem sido revolucionado por transformações tecnológicas a cada duas décadas, e a aceleração não está diminuindo. Pelo contrário, ninguém sabe como será o mundo daqui a cinco anos, exceto que a velocidade da mudança aumentará perceptivelmente.

A desigualdade sociopolítica e socioeconômica é o efeito de um esforço desesperado das mentes humanas por estabilidade. Nós reproduzimos, artificialmente, a miséria material que havia caracterizado nossa relação com o ambiente pela maior parte do tempo. Com isso, talvez estejamos gerando um tipo de miséria espiritual jamais existente no passado em que fomos caçadores-coletores.

A sensação apocalíptica de que seremos destruídos por nosso Deus ou por um deus qualquer é o reflexo de nossa autoconsciência, personalizada como a divindade que, ao nos criar, nos exilou do mundo para o cosmos confuso de nossas mentes. A consciência pode ser um estágio na mente das espécies, mas, no caso humano, pode ser a passagem para outra dimensão existencial ou uma patologia que se manifesta como senilidade.

Esse aspecto subjetivo de nossos dramas se evidencia em nossa relação com os símbolos. O fetiche da mercadoria e a divinização do dinheiro aparecem na economia como uma tentativa de calcular o incalculável. A contabilidade econômica, como a praticamos, sempre foi um exercício ilusório de fechar contas sobre a realidade objetiva e simbólica, externalizando o que é impossível calcular.

O Produto Interno Bruto (PIB) de uma nação nada mais é do que um cálculo grosseiro sobre as riquezas materiais e simbólicas produzidas ao custo da soma dos instantes de vida de todos os seres humanos, sem de fato considerar todos esses instantes. No trabalho de um lenhador ou de um filósofo, de um cientista ou de um agricultor, estão totalizados os instantes de trabalho de suas mães ou amas que os nutriram e cuidaram na infância. Uma cirurgia bem-sucedida é obra da perícia do cirurgião, mas também da higienizadora que limpa o chão da sala e do maquinário, e dos trabalhadores da indústria onde a anestesia é produzida.

A contabilidade econômica está, simplesmente, além do estado da arte de nossas técnicas. Possivelmente, com a computação quântica, iremos nos aproximar de cálculos mais precisos sobre a riqueza que produzimos e mesmo sobre nossas instáveis, crescentes e diversas necessidades básicas.

Atualmente, o grau de imprecisão dos cálculos sobre o estado de nossa economia é extremamente alto. O mercado dos salários envolvidos em atividades produtivas está na dimensão de 70 trilhões de dólares. O mercado de futuros, da especulação em torno das expectativas envolvendo investimentos e retornos sobre o capital fictício, movimenta em torno de 700 trilhões de dólares.

Como na crise da quebra das bolsas de valores de 1929, não temos clareza sobre o que de fato é riqueza material, essencial para a sobrevivência das populações (em termos de produção de alimentos e energia), e o que é mera especulação sem lastro. A escassez que se seguiu à quebra do mercado de futuros de 1929 gerou desemprego e fome no mundo inteiro. Mas a capacidade de produção industrial estava lá e se mostrou resiliente, a despeito da miséria imediata que sucedeu à crise.

Entretanto, ficou claro que crises de superprodução estão muito próximas das crises de escassez quando a desordem nas trocas comerciais se instaura. O prazo de validade da produção agrícola e a logística de estocagem e transporte podem criar sérios riscos de abastecimento e distribuição. Esse perigo já se insinua como efeito da guerra tarifária do segundo governo Trump. A cadeia global de suprimentos depende do respeito aos contratos, e neles se ancora o planejamento do mercado de produção e comércio internacional. Essa é a consequência mais dramática de uma produção globalizada.

Considerando o conjunto de evidências a que temos acesso, podemos entender que a situação de escassez de bens e insumos está sendo artificialmente produzida. Ao distribuirmos desigualmente a representação da riqueza socialmente produzida ao longo de incontáveis gerações, limitamos o acesso pleno aos bens que produzimos, sejam eles simbólicos (como conceitos filosóficos) ou materiais (como moradia, vestuário, alimentos e energia). Nossa sociedade é basicamente familiarizada com a condição na qual existiu por mais de 95% do tempo. Vivenciamos a revolução tecnológica, enquanto espécie, da mesma forma que um indivíduo vive uma crise psicótica ou uma disruptura psíquica.

Desse modo, podemos perceber o problema para além da culpa ou do moralismo. Nossas crenças compartilhadas são tanto uma parte do problema quanto um caminho para superarmos esse estado de estupor que vivemos em relação às revoluções tecnológicas que dissolvem o chão que pisamos.

A questão reside no ajuste entre nossas percepções e hipóteses sobre a realidade. Em qualquer campo de sentido, a imprecisão e a incerteza jamais podem ser totalmente eliminadas. Não sabemos por princípio. Contudo, podemos, em diferentes medidas e graus, aproximar nossa percepção da realidade, sempre tendo noção de que aparência e realidade não podem coincidir absolutamente. A realidade é, para observadores como somos, o que primeiramente aparece a partir de nossa perspectiva de observação.

A “Soma de Todos os Medos” é, em essência, o produto do nosso desajuste evolutivo: uma estrutura psíquica forjada pela escassez histórica que agora se depara com a superabundância tecnológica. Essa herança do medo e da objetificação do mundo se manifesta na produção artificial da miséria e na fixação por símbolos econômicos incalculáveis, como o dinheiro e o capital fictício, que mascaram a real capacidade produtiva da humanidade.

Superar este impasse exige um reconhecimento de que a desigualdade é a reprodução de um passado de privação e que a consciência, nossa maior disrupção, pode ser tanto uma patologia quanto a porta para uma nova dimensão existencial. Para persistirmos, não podemos nos apegar à humanidade que fomos; devemos abraçar a incerteza e nos transformar naquilo que ainda não temos a capacidade de conceber.

Referências e Influências Filosóficas

Objetificação e Separação do Mundo (parágrafo 1 e 2)
Existencialismo/Fenomenologia: A ideia da consciência como “deslocamento” ou “separação” do mundo (Heidegger, Sartre). Antropologia Filosófica: A transformação da relação humano-natureza pelo fogo e pela ferramenta (André Leroi-Gourhan).

Equilíbrio Tenso, Queda da Qualidade de Vida com a Agricultura (parágrafo 3 e 4)
Antropologia e História Crítica: Críticas ao mito do “progresso” ininterrupto da agricultura. Autores como Yuval Noah Harari (Sapiens) e James C. Scott (Against the Grain) discutem a “armadilha” da agricultura e o “equilíbrio tenso” dos caçadores-coletores.

Crise Psíquica da Espécie e Aceleração Tecnológica (parágrafo 8, 9, 11 e 20)
Teoria da Aceleração: A ideia de que a velocidade da mudança social e tecnológica ultrapassa a capacidade humana de processá-la (Hartmut Rosa). Psicologia Evolucionista/Psicanálise: A estrutura psíquica (inconsciente) ainda moldada por condições arcaicas (Freud/Jung, aplicados à espécie).

Produção Artificial da Miséria / Desigualdade como Estabilidade (parágrafo 12)
Marxismo/Economia Política Crítica: A análise de que a desigualdade não é acidental, mas estrutural e funcional ao sistema. A “miséria” é produzida dentro da abundância (Karl Marx, especialmente na análise das contradições do capitalismo).

Fetiche da Mercadoria e Divinização do Dinheiro (parágrafo 14)
Marxismo: O conceito de Fetiche da Mercadoria (Karl Marx), onde as relações sociais de produção aparecem como relações entre coisas.

Contabilidade Incalculável e Capital Fictício (parágrafo 15, 17, 18)
Economia Pós-Keynesiana/Marxista: Análise do capital fictício, especulação financeira e a dissociação entre valor real (produção de bens) e valor financeiro (David Harvey, Hyman Minsky). O PIB como medida “grosseira” da riqueza.

Aparência e Realidade, Incerteza e Transformação Necessária (parágrafo 22 e 23)
Metafísica/Epistemologia: A distinção entre aparência e realidade (Platão, Kant). O apelo à incerteza e à transformação como única forma de persistência (Nietzsche: a necessidade de se tornar o que se é, ou a constante superação).