É da tradição mística ocidental a ideia de que devemos nutrir a melhor parte de nós mesmos. Deveríamos deixar que ela crescesse em nosso interior, assimilando tudo que não fosse a expressão do bem. Desse modo, seríamos conduzidos diretamente a Deus para uma existência eterna.
Mas, primeiro é necessário entender que o melhor, ou o pior de nós, não podem ser ao modo das essências. Afinal, se concordamos que o mal não possui essência própria, se cremos que o mal é apenas a ausência do bem, porque não ir além e negarmos também o bem enquanto essência?
Nietzsche, ainda criança, percebeu que a onipotência divina não pode ser plena se Ele mesmo não for também o pai do mal. O criador da própria distância dele mesmo. De outro modo, Deus seria uma espécie de escravo da substância do bem. Resta que se Deus é Deus, ele certamente é amor, tanto quanto, ódio.
O fato é que um ser divino, em uma metafísica plena, tem que estar além do bem e do mal, além da justiça, do castigo e da moral. Todos esses artefatos intersubjetivos não são apenas humano, demasiado humanos, mas também estabelecem uma imagem de onipotência que simplesmente não é onipotente.
Os mais recentes achados da neurociência dão base a ideia de que não somos indivíduos. Nosso fluxo de consciência emerge de uma pluralidade de sensações e estados mentais que não possuem a unidade de caráter que atribuímos à noção de identidade. A meta consciência – a capacidade de se perceber percebendo – aparece em outros animais além dos humanos e é uma espécie de confluência de inúmeras processos diferenciados que dão origem a cadeias de tomada de decisão que sentimos como desejos que, em nossa percepção consciente, parecem ser a causa das ações em decorrência de um juízo aplicado retrospectivamente.
Há vários pacotes performáticos que desenham perfis de visão de mundo, preconceitos e gestos inconscientes. Esses modos de ver e atuar só adquirem significado quando áreas independentes do cérebro se dedicam a narrar os nossos próprios atos como cadeias coerentes de causas e consequências. Em geral vemos isso como processos de justificativa que precedem nossas ações. Em experimentos científicos têm sido demonstrado que essas explicações racionais são elaborados após já termos agido.
Essa diferença pode ser explicada pela divisão de tarefas que configuram nossos estados mentais. Uma parte da mente se configura como o “eu” da experiência. Outra parte da mente age como uma espécie de “eu” da narrativa. Ou seja, tendemos a esquecer o registro contínuo das experiências em favor de uma seleção de memórias que forneçam um sentido e uma identidade coesa.
Dessa seleção de memórias, surge a ilusão de um centro gestor, uma espécie de alma imutável que fundamente a ideia de que somos, ou temos, uma identidade. Na verdade somos “divididos” (divíduos) e não indivíduos.
Bem, quando buscamos nosso verdadeiro “eu” na verdade, em lugar de o encontrarmos, o estamos inventando.
Uma metafísica desse espírito multifacetado não tem de ser necessariamente uma novidade. A ideia de vacuidade do self e da percepção da realidade como um sonho ou simulação está de acordo com o taoísmo. O caminho, em português, é uma tradição filosófica e religiosa com cerca de 5000 anos iniciada no leste asiático e de grande influência na história da china.
Mas para o ocidente judaico cristão, esses achados da neurociência são como uma bomba atômica desintegrando nossos mais caros pressupostos metafísicos.
No entanto, podemos nos valer das obras de Hume, Schopenhauer, Espinosa e Nietzsche como precursores nesse modo inusual de pensar…
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Oi Marco,
Dentre estes grandes que você cita, podemos também colocar Freud. Todos com um pensamento sempre demolidor das certezas que cegam, como por exemplo o conceito de identidade.
Por quê nos fecharmos na prisão identitária, se somos abertos ao devir?