Em seu livro A Elite do Atraso, Jessé Souza nos fala do quanto repetimos em nossa sociedade a relação descrita de forma primorosa nos escritos de Gilberto Freyre, onde a relação senhor-escravo poderia ser denominada como uma relação espírito-corpo. Onde a atual classe média tenta manter a todo custo o poder através do patrimônio do conhecimento.
Tenho me questionado se tal relação não estaria hoje se repetindo, com exceções é claro, na relação academia-trabalho de ponta, onde a distância de mantém tanto por responsabilidade dos acadêmicos quanto dos profissionais dos serviços, os quais de certa maneira acreditam que só poderiam contribuir na produção com seu corpo. Vivencio na minha prática o quanto muitos trabalhadores têm dificuldades para saírem da inércia e começarem a se questionar sobre suas práticas, sonho de Paulo Freire… Da mesma forma, noto trabalhadores do SUS por exemplo, que se questionam e querem compartilhar seus conhecimentos e se vêem discriminados tanto pela academia quanto pelos próprios colegas.
Essa relação de poder descrita anteriormente é visível inclusive nos congressos e encontros, mesmo naqueles que se propõem a diminuir a distância entre academia, trabalhadores e usuários. Isso aparece claramente nos encontros onde vemos acadêmicos que se reúnem nos auditórios da “Casa Grande” e os trabalhadores que se reúnem nas rodas de conversa da “Senzala” com pouco público acadêmico presente.
Enfim, um compartilhamento de minha angústia, mas também me dando conta que vários profissionais da academia e trabalhadores do SUS estão iniciando um processo de questionamento e busca de respostas e percebendo que as duas ‘classes” têm muito a ganhar uma com a outra.
24 Comentários
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Concordo com você Pat. Via de regra, a dificuldade não está apenas em levantar os questionamentos e/ou falar das praticas, mas também em teorizá-las, o que exige um rebuscamento científico, e que termina assustando aqueles que não o têm, pela cobrança. E isso vem desde a academia. O rigor exigido na produção científica tem desestimulado muita gente na realização de pesquisas, na realização de cursos de pós-graduação. O processo poderia ser mais simples. Todos sairiam ganhando.
Bjs
Emília
Por Marcelo Dias
É isso Pati!
São essas dificuldades que me deparo no dia a dia. E essa baixa “auto-estima” do trabalhador não é de agora, a ponto dele acreditar nisso.
Esse trabalho de Blumenau é muito bom mesmo. E vejo por aí mesmo, aos poucos colocando palavras no fazer, nesse corpo que também pode falar.
Obrigado sempre!
Por patrinutri
Acredito que podemos sim cada vez mais sensibilizando os coletivos e provocando que reflitam seu fazer e os coloquem em palavras. A RHS é um espaço potente para isso, pois não tem as amarras acadêmicas ao mesmo tempo que conversa com os pensadores.
Acredito também que o GraduaSUS ou PET saúde também contribuem muito para esta aproximação, assim como VERSUS também. Porém são iniciativas que tem lutado a duras penas por recursos e apoio, embora seus efeitos sejam valiosíssimos.
Lembrei agora também da linda iniciativa da Bahia o Permanecer SUS que foi documentada nos vídeos do premio Humanizasus, vale a pena rever!
https://redehumanizasus.net/permaneco-eu-permaneco-tu-permanecer-sus/
Marcelo querido, interessante esse modo de abordar a questão, tudo a ver. São armadilhas que vão invadindo todo tipo de território e desvitalizando-os.
AbraSUS!
Por Sérgio Aragaki
Caro Marcelo,
De fato, infelizmente, essas relações de dominação estão no cerne de grande das práticas de ensino e de trabalho em saúde, e que em nada se distanciam das outras relações.
Temos aprendido desde sempre a sermos submissos, não questionarmos, não fazermos diferente.
Perde-se a historicidade, perde-se a análise crítica e o compromisso com a produção de vida.
Mas é por isso também que continuamos na luta. Fortalecendo nossas redes, nossas práticas.
Muito grato!
Por patrinutri
Tua experiência com o grupo de estudantes por aqui, também promove esta quebra de paradigma Sergio. Muito legal aproximar as políticas públicas inclusivas dos futuros profissionais de saúde, em especial dos médicos.
Vamos abrindo portas e fortalecendo cada vez mais o SUS.
Essa conversa tá ficando cada vez mais interessante porque nos faz pensar que talvez não haja uma grande diferença entre estes dois espaços, pelo menos aquela mais visível e tradicional que opõe academia e prática. Ciência e ‘aplicação’ da produção teórica na prática já é algo bastante superado em quase todos os campos do saber.
Estou pasma com a “douta ignorância” dentro da academia, depois de ter ficado longe dela por muitos anos de modo formal. Pois informalmente sempre estive em contato, direta ou indiretamente. E minha formação se deve muito mais a outros tipos de dispositivos mais marginais, como os grupos de estudos ou cursos informais. Por outro lado, vemos se espalhar cada vez mais um modo de fazer as práticas que no limite chega a desprezar a saudável necessidade de acolher e produzir teoria. Assisto meio estarrecida a colegas de minha área, a psi, contentando-se em se deixar guiar pelo mais estreito senso comum em suas práticas. Será isso produto de nossos tempos atuais, que celebram a ignorância, a repetição do mesmo e o desprezo pelo esforço de pensar?
Rica e necessária discussão Marcelo. Os comentários o demonstra.
Não entraria nesta questão a partir dos conceitos de autoestima ou subserviência dos trabalhadores, muitas vezes classificada como preguiça ou falta de ter o que dizer, diante de uma atividade definida pela científica organização do trabalho,frente a qual restaria somente à força de trabalho a execução de um prescrito que é a excelência comprovada e evidente do que se tem que fazer.
No trabalho aquele que faz tem sim uma riqueza de experiência, de saber, de linguagem e de escrita que não são, ou ao menos deixaram de ser, valorizadas e reconhecidas pela academia.
Os pesquisadores franceses do trabalho estão hoje tocando neste ponto necessariamente.
Faço esta discussão em minha tese de doutorado: sair de si, usar de si. Estranha experiência, um trabalho…
Lá discuto estes saberes na agonistica que é o trabalho no sistema capitalista e aposto numa libertação em o trabalhar que é uma estranhíssima experiência.
Experiência que é a base mesma do conhecer e que, numa determinada relacao de saber-poder, foi desvalorizada pela academia que se vê no contemporâneo sem ferramental para falar o que vê e ver o que fala.
O aparente silêncio existente no trabalho é em realidade um grito sempre ecoado e rebatido sobre uma pseuda desvalorização do saber laboral.
Pseuda porque nutriu-se dele para controla-lo e acabou controlada por ele, já que fala de um trabalho que não é aquele que se experiencia e pesqiisa um trabalho do qual não sabe falar.
Entre o prescrito e o realizado há sempre distância. Que distância é está? Foi este o fio condutor de minha tese.
Por Cassio Machado
Venho para essa para esse post por meio de um link, talvez muitos também. Me seduz muito a temática mas admito que a cada linha meu espanto cresce.
i) a relação casa grande / senzala parte do viés da violência de um para com outro, e
ii) apenas li reproduções, mesmo que sutis dessa violência (alguém ergue a mão e fale que “não foi bem isso”):
“trabalhadores têm dificuldades para saírem da inércia”
“os vejo, via de regra, valorizando pouco esta construção”
“a dificuldade não está em levantar os questionamentos e/ou falar das praticas, mas em teorizá-las, o que exige um rebuscamento científico”
“essa baixa “auto-estima” do trabalhador não é de agora”
“provocando que reflitam seu fazer e os coloquem em palavras”
“a sermos submissos, não questionarmos”
“contentando-se em se deixar guiar pelo mais estreito senso comum em suas práticas”
…frases que reforçam o sistema e responsabilizam o trabalhador, ele precisa sair da inércia, valorizar a construção teórica, teorizar suas práticas, refletir, colocar em palavras, não se deixar guiar pelo senso comum e de quebra dar um jeito nessa “baixo auto-estima”
Pessoal, sinceramente, o sistema é violento, e grande parte desses trabalhadores partiram das academias e reproduzem apenas suas lógicas escolarizantes.
Muito se escreve de como “branquear a senzala”,
como diria o filósofo “quando meu avô tinha dentes ele já pensava assim”.
Mas precisamos falar dos agressores.
Por Marcelo Dias
Sim Cassio! Dar-se conta de que o sistema é violento (“Pessoal, sinceramente, o sistema é violento”) é a ideia mesmo, quebrar com o discurso de que não existe uma disputa de classes e de quem vai ter mais poder. Responsabililzar-se enquanto trabalhador é fundamental sim, pois acredito que muitas vezes mantemos o discurso dominante sem nos darmos conta (isso sim é branquear a senzala!). No mais vamos conversando, boa discussão!
Perfeito Cássio. É a esta relação agonistica que me referia e, como você, também senti no tom dos comentários um certo reforço de uma prática discursiva hegemônica de que falta algo ao trabalhador, como se não saber ser acadêmico fosse uma deficiência. Por que todo discurso para ser valorizado tem que seguir o formato acadêmico? Quem assim o quer? O trabalhador tem que ser acadêmico? A academia também não é um trabalho? Por que a academia não consegue falar do trabalho como o vivemos na prática? Corpo e intelecto estão mesmo separados? Como dizer um saber do corpo? Como viver um saber do intelecto? Que distância há entre viver e pensar? É uma distância essencial ou construída historicamente? A verdade do corpo só serve se for verdade do intelecto? Quantas questões abrindo questões! Riqueza e enigma indecifrável do trabalho,ou melhor, estranheza de um trabalho…
Por Marcelo Dias
Miguel! Trazendo conhecimento e uma boa discussão!
O que é ser acadêmico? Não penso que tenhamos que ser uma coisa ou outra, mas que possamos por exemplo nos permitir de pensar e pesquisar por exemplo. São privilégios da academia? A prática é só da ponta?
Por patrinutri
Toda esta conversa me fez lembrar um “causo” do início de minha vida profissional onde aprendi mais sobre o mundo do trabalho:
https://redehumanizasus.net/descascando-batatas-desvendando-o-sentido-do-trabalho/
Aguardo comentários!
Linda Patty bom exemplo de mergulho no sentido do trabalho. Prova de que as adversidades não são problema, mas matéria prima da Humanização. Votado, lido e comentado. Muiiito saudade. Bjs
Para quem se interessar e tiver fôlego, são quase 400 páginas, rs, minha tese está na RHS : https://redehumanizasus.net/92668-por-uma-clinica-da-experiencia-trabalho-imaterial-saude-e-capitalismo-tese-de-doutorado/
Verão que está discussão levantada pelo Marcelo me é muito cara. Obrigado Marcelo.
Lindo Miguel,
Passei o link pros meus colegas e professores da especialização em Psicopato e Saúde Pública da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa.
Miguel, no link disponibilizado aqui por vc não foi colocado o próprio link prá tese. Fui no Google e achei o dito cujo:
https://www.slab.uff.br/psm/uploads/2015_t_MiguelAngelo1.pdf
Já passei pros colegas da especialização e vou colocá-lo em teu post de 2015, ok?
Beijo e agradecimento por nos proporcionar essa experimentação potente.
Acaba de sair uma publicação da Iluminuras, chamada Biocapitalismo, com textos do Antonio Negri. Um deles é sobre o trabalho no capitalismo em suas novas modulações.
Obrigado Isa. Vou ver sua indicação sobre o Negri.
Bjs.
Querido,
Que tal publicar novamente a tua tese? O post com ela é de 2015.
Bjs
bem legal o post e o debate que sucitou! Agradeço a Patinutri pela gentil comunicação para que eu o olhasse. Fiquei pensando, Marcelo, o quanto temos conseguido “furar este cerco” com nossas esforçadas metodologias participativas de pesquisa que, desde os anos 60, afirma a inversão metodológica do “Transformar para Conhecer”, como bradavam os institucionalistas. Acho que no campo da saúde e especialmente da sáude mental, avançamos muito no sentido de compor uma nova ética para pesquisa, mas como dizes e a tese de Miguel Maia aprofunda, entre nossos esforços e a capacidade de fato de criação de alternativas ao trabalho prescrito e premiado no meio acadêmico, existe uma larga distância. Gosto, entretanto, de pensar o quanto a mesma academia produtora de tantos dispositivos biopolíticos de controle dos corpos é a mesma que nos incita à reflexão, à prescrutar experiências fantásticas de gente como a gente , desassossegadas com a burocratização do cotidiano em serviços e gabinetes de pesquisadores ou salas de aula… Gosto de pensar que meu espaço acadêmico, não por acaso alvo dos ataques nocivos de um governo golpista que quer rifar as universidades públicas como está fazendo com tantas políticas sociais e já fez com a UERJ, é tambémo espaço de encontros com tantos trabalhadoras e trabalhadores da saúde, da educação e da luta contínua por um país mais digno e menos desigual. E tenho muita alegria quando encontro debates quentes como este que esta RHS nos propõe a nos lembrar que , como se diz na minha terra, “Não tá morto quem Peleia”. Abraços gratos pelo encontro provocado aqui!
Que belo comentário, Simone! Lembrar que a academia pode ser esse espaço paradoxal, de encontros e criação em contenda com a disciplinarização dos corpos.
um grande beijo!
Por patrinutri
Alegria pela conversa, alegria por sua volta a RHS querida. Com certeza as pesquisas nas quais envolvemos a PNH tem este tom participativo, qualitativo, que valoriza a caminhada, que une pesquisadores e pesquisa, tema e sujeitos, feitos e efeitos.
Seguimos no contra hegemônico para produzir um novo inclusivo e mais socialmente representativo.
Bjs saudosos
Por patrinutri
Muito boa esta provocação, Marcelo.
Os modos de escrita e construção do conhecimento impostos por espaços acadêmicos afastam sim os trabalhadores da escrita sobre o cotidiano. E, por consequência, também nos priva de conhecer as riquezas desta experiência.
Sempre provoco grupos de saúde a escreverem relatos sobre o seu fazer e os vejo, via de regra, valorizando pouco esta construção e, ao mesmo tempo, um grande medo de expor-se a críticas, uma vez que estão distantes desta escrita “científica”. Perdemos todos, perdemos muito.
Deixamos de compartilhar ideias ricas de afeto e que, verdadeiramente, realizam construções de saúde. Deixamos de pensar caminhos de aproximação dos grupos envolvidos no trabalho em saúde e suas comunidades e deixamos de qualificar os saberes instituídos com novas correntes de pensamentos e vivências.
As equipes alegam não ter tempo para esta escrita, o que é absolutamente verdadeiro, em que pese que em seu fazer o que se valoriza é a execução, muito mais que a reflexão. Mas perdem os trabalhadores, em prazer de ver afeto e conhecimento e inovação em seu fazer e perde a academia, em criatividade e proximidade com a realidade vivida para além de números e técnicas.
Estes dias obtivemos uma pequena vitória no sentido da proximidade destes dois campos registrados aqui na RHS, a apresentação do trabalho do CAPSI de Blumenau, veja a postagem: https://redehumanizasus.net/oficina-conversando-e-cozinhando-capsi-blumenau/
Obrigada pela oportunidade de reflexão! Seguimos na luta em favor desta aproximação.