Em Porto Alegre, no movimentado e caótico centro da cidade, observo duas crianças entrarem no ônibus. Um menino e uma menina que não têm mais de 10 anos. Parecem ser irmãos, estão bem vestidos e portam mochilas escolares. São crianças pardas como a maioria das crianças nessa cidade de cerca de 1.500.000 habitantes. Tem o olhar vivo e atento, porém não aparentam receio, movimentam-se com agilidade, passam por baixo da roleta do cobrador e sentam-se juntos no primeiro banco disponível.
Observo e penso em meu filho único de 12 anos. Sempre o levamos a escola no carro da família ou através do serviço de lotação escolar. Vivemos em um condomínio fechado, com segurança 24 horas. Já andou de ônibus algumas vezes, sempre comigo. Fora da escola ele tem se relacionado com seus colegas através das salas virtuais onde se encontram, cada um em seu próprio quarto, para jogar vídeo game. Eles se visitam ocasionalmente e já foram ao cinema no shopping center, mas sempre levados e buscados pelos pais. Eu e minha esposa pensamos em tudo isso, de forma tácita, como um tipo de zelo, cuidado e até investimento. Parece com uma segurança e conforto que podemos lhe dar. Algo que nós mesmos não tivemos em nossa infância. Mas, pensando bem, todo o excesso de proteção é também uma forma de privação.
Aquelas duas crianças, voltando ou indo para a escola, tendo as recomendações dos seus cuidadores e um ao outro como amparo, me lembram a infância típica ao longo dos anos 70 e 80 do século passado. Recordei as incontáveis horas em que ficávamos na rua, brincando, longe do olhar dos adultos, expostos a dureza da vida, enquanto meu pai trabalhava e minha mãe cuidava da casa e das minhas irmãs mais novas.
Aprendi cedo muitas verdades da vida simplesmente por estar convivendo com outras crianças, longe do olhar super protetor dos adultos. Tive que lidar com medos e frustrações, com limites muito claros e prioridades familiares, nas quais eu só era implicado indiretamente. Primeiro o trabalho e a alimentação, depois nossas necessidades subjetivas.
Alimentação, saúde, segurança, estudos e brincadeiras – nessa ordem – eram as prioridades que, ao garantir a estabilidade da família, me favoreciam indiretamente. A comunidade era um espaço onde estava pressuposta alguma solidariedade e fraternidade. As dificuldades e limitações econômicas provocaram a necessidade de se apostar na possibilidade de que, exceto extraordinariamente, os nossos concidadãos seriam gentis e cuidadosos com os seus semelhantes.
Atualmente, a difusão instantânea de imagens, vídeos, áudios e textos nos permitem acessar quotidianamente o pior da humanidade. Por outro lado, muitos de nós possuem mais recursos e menos filhos.
O contraditório é que, quanto mais temos segurança e conforto, mais tememos. Grande parte dos recursos das pessoas de classe média e alta é direcionado para medidas de proteção e segurança. Nossos filhos e nossas famílias vivem acossados, protegidos em moradias que parecem castelos medievais.
Foi muito bom ver aquelas crianças vivenciando, pela indisponibilidade de recursos, uma experiência de estar no mundo baseada na confiante aposta de que o desconhecido é também um humano. Fui tomado pela emoção ao ver que seus pais, ou cuidadores, acreditam que a maioria esmagadora das pessoas que andam de ônibus irão cuidar e proteger, as crianças anônimas que circulam pela cidade, a despeito de toda a maldade que existe no mundo.
Atualmente as comunidades tradicionais são tidas pelos senso comum como selvagens. Mas nelas, os filhos eram uma dádiva da comunidade e como tal, eram amados e protegidos de acordo com todos os recursos disponíveis. E, nossa própria existência já é uma evidência de que, a despeito de todos os perigos a que estiveram expostos, essa corajosa aposta foi bem sucedida.
Somos nós, os civilizados, que perdemos a conexão com nosso ambiente e a confiança na humanidade.
As civilizações modernas gastam um montante gigantesco de recursos nos seus complexos militares. O pressuposto da existência dessa gigantesca indústria tecnológica dedicada ao desenvolvimento e manutenção de métodos de destruição, é o de que a humanidade não é confiável. De que apesar de todos os mecanismos civilizatórios que desenvolvemos, seguimos sendo predadores perigosos e cruéis, capazes de exercer a agressividade mesmo sob risco de autodestruição.
Paradoxalmente, são os pobres em suas comunidades organizadas de modo precário e vulnerável que ainda ousam confiar na humanidade, enviando seus filhos para os espaços urbanos na confiança de que seremos ao menos, civilizados e acolhedores.
Não vi negligência naquela cena. Vi a força que a solidariedade e o afeto podem ter. Senti o quanto a humanidade apresenta dificuldades para viver na abundância material e simbólica. Podemos afirmar que buscamos distinção, o privilégio e a exclusividade, mas só podemos viver plenamente num mundo onde a igualdade nas condições de vida, produza segurança e tranquilidade.
A dignidade é um bem que não pode ser possuído individualmente. Ou ela é um atributo da condição humana ou não existe. É significativo que os mais abastados e nutridos entre nós sejam aqueles que mais se desesperam com o que chamam de “natureza humana”.
O pecado original não é cometido antes da saída do Jardim do Éden. Nossa face mais feroz aparece entre aqueles que, em minoria, chegam ao céu e passam a chamar de inferno o lugar em que abandonaram seus semelhantes.
Por Emilia Alves de Sousa
Os pais confiam porque não sobra outra alternativa! E algumas vão sem passe escolar, passando pelo constrangimento de passar por baixo da catraca de acesso. Defendo uma política de disponibilidade de transporte gratuito para as crianças e adolescentes das escolas públicas, que pegue e deixe em casa, pelo menos as de até 14 anos. Idade mais vulnerável à violência urbana. Lembrando daquele adolescente que perdeu o ônibus que ia para a escola, ficou brincando num parque e foi morto pela polícia. Um crime lamentável que poderia ter sido evitado se houvessem mais investimentos na qualidade de vida da população jovem.
Reflexões pertinentes Marcos, como sempre!
Abraços!
Emília