Condutas Bioéticas em um Caso de Esquizofrenia e Situação de Rua

6 votos

 

No dia 10 de março de 2020, iniciei minhas atividades práticas como farmacêutico residente na Unidade Básica de Saúde (UBS) do Diamantino, na cidade de Santarém. Devido não haver a presença fixa do profissional de farmácia na Estratégia de Saúde da Família (ESF) houve uma certa dificuldade na inclusão das atividades da UBS. Logo, direcionaram-me a acompanhar a as atividades do Núcleo Ampliado Estratégia Saúde da Família (NASF) em visitas domiciliares. Dentre os casos, relatarei o que mais me chamou atenção: um paciente esquizofrênico em situação de rua. Embora seja um caso de complexa resolução, é bem comum. Sem condutas “corretas” e bem elaboradas não é possível promover saúde a esse paciente, prejudicando a sua família e/ou cuidadores.


Estudo de Caso


A ESF observou que um paciente com idade adulta, do sexo masculino e problemas psiquiátricos, após vários meses sem retirada dos seus medicamentos do “grupão” de saúde mental, deu continuidade ao tratamento farmacológico. Logo, foi encaminhado a Agente Comunitária de Saúde (ACS) responsável para uma visita domiciliar desse paciente que o encontrou “sujo” e em situação de rua próximo a sua residência.

A vizinhança informou que o paciente havia fugido de casa e estava morando na calçada da vizinha há 4 meses. Essa vizinha tornou-se a cuidadora e ofereceu um espaço ao lado do seu terreno para ele dormir: um local de alvenaria coberto de lona que continha uma pia, um colchão e uma rede. A vizinhança informou também que a cuidadora estava dando a medicação escondida no café da manhã. Dessa forma, o NASF foi acionado para o acompanhamento desse paciente visto que era um caso complexo. A Assistente Social que ficou responsável pela visita domiciliar.

A cuidadora informou que ajuda o paciente há 4 meses dando alimentação. Há 2 meses, procurou a família do paciente para perguntar se ele tomava alguma medicação. A família do mesmo entregou uma sacola plástica com as receitas médicas e os documentos do paciente. Por isso, a cuidadora pela primeira vez foi buscar sua medicação na UBS.

No diálogo com assistente social, a cuidadora informou que o paciente não aceita tomar mais que um banho por semana. Quando aceita, ela mesmo dá o banho com uma mangueira em frente à sua casa. A troca das roupas ocorrem a cada dois dias, quando ele permite.

Sobre a medicação, ele não aceita. Diz que não se sente bem quando toma ou diz que estão tentando matá-lo. Por isso, a cuidadora coloca a medicação junto ao café “puro” para que ele não perceba. Porém já falaram para o paciente que ela faz isso, e nos últimos dias ele não se alimenta na casa dela.

Quando questionado se estava realizando acompanhamento médico particular ou através do CAPS, disse que não.

Foi perguntado sobre o recebimento do benefício do INSS. Ela informou que recebe desde que o paciente aceitou viver em sua casa. Fica com o dinheiro, pois se dedica a cuidar dele, até saiu do emprego por esse motivo.

Ao avaliar o prontuário do paciente, foi observado que o medicamento prescrito (há 1 ano) era a Risperidona e Clonazepam.


 

Embora haja ferramentas para o manejo de Populações em Situação de Rua e Saúde Mental, cada caso precisa ser estudado para compreender a real situação daquele paciente e sua relação com o meio em que ele vive. Impor uma conduta “prontas” poderá dificultar a aliança terapêutica com paciente, impendido a sua reabilitação. Em decorrência disso, realizei um parecer bioético baseado no modelo principialista, avaliando o caso apresentado acima.

 


Parecer Bioético


Autonomia

→ Utilização do Medicamento: o paciente não tem interesse em fazer uso da medicação prescrita. A introdução do medicamento junto ao café puro fere a autonomia de decisão em não realizar o tratamento farmacológico.

→ Decisão de morar na rua: o paciente também tem a liberdade de escolha de onde prefere viver. Obrigar ou força-lo em ficar em uma residência sem a sua vontade fere esse direito.

Beneficência

→ Redução dos Transtornos: após ofertado atenção integral a saúde, o paciente e sua família terá uma melhor qualidade de vida.

→ Vida Digna e Autonomia: o paciente curado poderá inserir novamente a sociedade, trabalhar, compor uma família.

(Não) Maleficência

→ Medicamentos de Controle Especial: os medicamentos Clonazepam e Risperidona são medicamentos que podem causar dependência. O uso incorreto, e até mesmo a retirada rápida, pode causar síndromes de abstinência.

→ Reações Adversas: o medicamento prescrito deveria ser tomados após a ingestão de algum alimento de forma a reduzir os efeitos adversos.

→ Posologia Incorreta: o medicamento “Clonazepam” dispensado pela UBS normalmente deve ser tomado pelo horário de almoço e antes do horário de dormir, no entanto, era tomado pela manhã. Por isso, o paciente sentia algumas reações adversas e provavelmente entendia que “queriam lhe matar”.

→ Higiene: a higiene pessoal garante uma melhor qualidade de vida pois evitam doenças de pele, proliferação de microrganismos patógenos e cáries dentárias.

 Justiça

→ Interdição: o paciente que se encontra em uma quadro psiquiátrico pode ser interditado pela família para que garantam um melhor tratamento até que se recupere.

→ Direto a Saúde: o direito a saúde é universal.

→ Auxílio doença: pacientes nesse estado são amparados por lei para receber uma auxílio de um salário mínimo para custear as despesas da doença como a Risperidona, um medicamento que é de alto custo e pouco ofertado pelo SUS.


 

A partir de uma avaliação superficial desse Caso, é possível verificar que muitos direitos do paciente são feridos. No entanto, por se tratar de um caso peculiar, é necessário ter atitudes cautelosas, visando o bem estar e a reabilitação do paciente. Abaixo apresento uma proposta de Plano Terapêutico Singulor (PTS) baseado em algumas evidências científicas.

 


 

Plano Terapêutico Singular (PTS) para o Paciente Esquizofrênico em Situação de Rua


 

  1. A Família cuidadora deverá ter o acompanhamento da Assistente social para compreensão do uso racional do benefício, uma vez que deverá ser utilizado primeiramente para promoção da saúde do paciente: compra dos medicamentos, consultas e exames particulares;
  2. A cuidadora (a pessoa de confiança do paciente) deverá compreender o a doença e manter estreito os laços com paciente para facilitar a aliança terapêutica.
  3. Iniciar o Tratamento Farmacológico prescrito nos horários corretos que será orientado pelo Farmacêutico, até a próxima consulta médica. Reforçar a família em adquirir o medicamento não disponível na UBS por meio do auxílio recebido.
  4. Encaminhar o paciente a consulta médica, ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para atendimento com Psiquiatra ou Neurologista para identificação da patologia do paciente e manter ou alterar o tratamento farmacológico;
  5. ESF providenciará a medicação e realizará o monitoramento do paciente e cuidadora;
  6. Iniciar a Psicoterapia tanto para o paciente quanto para a família (cuidadora) para compreender e encarar a patologia, assim como fortalecer o vínculo familiar: ficar em casa, realizar a higiene pessoal, alimentar-se corretamente.
  7. Iniciar a Terapia Ocupacional para que auxilie no desenvolvimento motor e mental.
  8. Se possível o paciente poderá ocupar-se em atividades em famílias, ofertadas por instituições ou grupo de auto-ajuda como os Psicóticos Anônimos.

Referências


 

HE, Qian et al. Risk of dementia in long-term benzodiazepine users: evidence from a meta-analysis of observational studies. Journal of Clinical Neurology, v. 15, n. 1, p. 9-19, 2019.

SHIRAKAWA, Itiro. Aspectos gerais do manejo do tratamento de pacientes com esquizofrenia. Brazilian Journal of Psychiatry, v. 22, p. 56-58, 2000.