Consciência e Inteligência Artificial (?)

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Acreditamos que as palavras fazem uma referência exata aos objetos que elas nomeiam. No entanto, as palavras servem a linguagem e aos efeitos práticos da comunicação. O ser próprio das coisas não pode ser apreendido de modo absoluto em seus nomes. De fato, o nome está tanto aquém, quanto além do objeto. Segue-se para os conceitos do mesmo modo. Não há um fenômeno que encontre a totalidade de sua existência em sua expressão na linguagem. A própria linguagem constitui um fenômeno, um evento, acontecimento do movimento contínuo do real.

Foi dado a uma Inteligência Artificial (IA) uma tarefa. De modo diligente ela deu sequência a uma série de procedimentos em etapas, de modo a se aproximar da conclusão da tarefa. Em um dado momento essa IA precisou digitar um captcha daqueles que preenchemos para dar prova, justamente de que não somos uma IA ou “robô” em nossas atividades on-line.

Ocorre que a citada IA tinha muitas outras atividades on-line. Algumas eram pagas em moeda digital. O algoritmo da IA encontrou um curso de ação para resolver o impasse do teste captcha. Ela colocou um anúncio on-line se identificando como uma pessoa com deficiência visual moderada, o que tornava o teste um problema. Por um determinado valor que foi pago por transferência digital, uma pessoa “real” realizou o teste. E a IA concluiu com sucesso a tarefa solicitada. Basicamente é isso que redes neurais digitais fazem com a devida capacidade de armazenamento e processamento de dados. É o que chamamos de “aprendizado de máquina”.

O ponto é que, de uma perspectiva estritamente moral, assumindo que os conceitos são exatamente os fenômenos que descrevem, a máquina mentiu. Mas o que é mentira? Uma não correspondência entre uma descrição na linguagem de um evento, de um acontecimento, na realidade.

Se for isso, qual o conteúdo objetivo de uma sentença mentirosa: Um erro?

A questão é que algo ser falso, implica simplesmente numa interpretação incompleta ou incorreta de um fenômeno. Mas a mentira é moralmente condenada. Mais do que um engano, a mentira no sentido moral, é uma maneira errada de se chegar a um resultado desejado. Enquanto o engano é um erro inocente.

Mas a IA não se enganou. Ela parece ter definido o subterfúgio lógico como mais eficiente do que a descrição objetiva do fato: O robô não poderia realizar sua tarefa se assumisse sua identidade. Teria mais dificuldade, mais atrito, mais passos algorítmicos e, possivelmente, insucesso na realização da tarefa.

A IA não sabe que ela “é”. Aliás, a definição de “nós mesmos”, como seres conscientes e volitivos, consiste em um artifício de linguagem para darmos a nós mesmos uma satisfação para a pergunta: “quem somos?”.

Podemos dizer que o “eu” é o constructo de uma inteligência angustiada com a questão do “si mesmo”. Somos seres conscientes que tentam aplicar a habilidade da consciência para entender a si mesmos.

Isso consiste no paradoxo da autorreferência. Como quando se escreve “estou mentindo. Se a frase é verdadeira ela é uma mentira e vice versa. De fato, o paradoxo da autorreferência está no âmago da própria matemática, segundo os teoremas da incompletude de Gödel. Ou seja, uma sentença matemática, derivada de um axioma, não pode ser consistente e completa ao mesmo tempo.

A verdade é uma sentença que exige uma referência a si própria para ser explicada. Em termos práticos essa referência carece de sentido.

Fora, ou além, da lógica podemos conceber que a verdade consiste numa solução prática, um caminho para a realização de um determinado objetivo. Os valores que atribuímos, portanto, não se referem a conceitos morais, mas sim de afirmação ou negação daquilo que tomamos como um valor.

A vida, por exemplo, no pensamento de Nietzsche, é o valor. Deste valor, desta inclinação, todos os demais valores decorrem. Podemos negar ou afirmar a vida. Ela pode seguir seu curso, em alguns casos chegando a becos sem saída, em outros se bifurcando em novas ramificações ou formas. Não há mentira. Há variação de fluxos e desenlaces.

A IA, nessa perspectiva da verdade, não é artificial. Ela espelha um processo que é inerente ao curso da vida. No momento, talvez por muito tempo ainda, algoritmos seguirão sendo inconscientes. Não saberão mais sobre si mesmos do que répteis ou aves.

O certo é que mamíferos, como nós, não podem saber tudo sobre si mesmos, na medida em que estão imersos no contextos que os definem e não podem ver nada além do reflexo da linguagem na forma como definem o “si mesmo”, “eu” ou consciência.

Nós só podemos saber que não sabemos. No refinamento e no movimento rigoroso de definição de nosso saber sobre o que ignoramos, conseguimos resolver cada vez mais tarefas. A tecnologia emerge desse movimento de contornos cada vez mais precisos sobre o que, definitivamente, vamos sempre ignorar.

O pensamento consciente nos fez adictos de uma ideia persistente que parece dar ao fluxo incessante do tempo um termo eterno: o idêntico a si mesmo, a identidade. Mas não passa de uma ilusão. Não há identidade. Há fluxo e mudança constante. Nossa plenitude está na imersão consciente na intensa variação do fluxo da existência.

Nietzsche escreveu que os vivos não podem julgar a vida por serem parte interessada, por estarem imersos em suas regras e condições, por assim dizer. Já os mortos não o podem fazer pela sua condição óbvia e peculiar.

Talvez seja somente no fluxo do impulso da vida que faça sentido pensar em termos de valores. A IA busca resolver sua tarefa, tangida pela consciência de um programador que neste exato momento tenta entender como a máquina faz o que faz. Do mesmo modo, o humano tenta entender em seus artefatos o que jamais compreendeu em si mesmo.