dia 11 de janeiro de 2019
No jornal foram 33 os casos de feminicídio noticiados no Brasil em 2019.
O novo ano, que estava nascendo, parecia replicar o mesmo padrão de sociedade em que vivíamos desde a época da colonização. Entretanto algo para mim era diferente. O diferente era o e-mail institucional que recebi convidando para as celebrações do Janeiro Branco.
Como atuo na área da saúde mental me enviaram mais de uma vez esse e-mail, e que me pôs a pensar: Janeiro Branco?
As críticas aos meses cromáticos desse padrão ‘persecutório’ de saúde não são novidades, mas logo no início de ano o convite me pareceu mais perigoso.
Uma busca rápida me informou o site oficial da campanha . Não quero criticar frontalmente esse tipo de ação, aliás, quantos profissionais não devem estar engajados e animados em seus serviços nesse mês que, nas políticas públicas, é a ponte entre ano novo e o carnaval?
De toda forma o site nos informa:
Uma Campanha que, por meio dela em todo o Brasil e em outros países, cidadãos, psicólogos e demais profissionais (da saúde ou não), estão se mobilizando para levar mensagens e reflexões aos indivíduos e às instituições às quais esses mesmos indivíduos encontram-se entrelaçados: “quem cuida da mente, cuida da vida”; “quem cuida das emoções, cuida da humanidade”; “quem cuida de si, já cuida do outro”; “sem psicoeducação não haverá solução”; “autoconhecimento: isso também tem a ver com a sua saúde mental”; “o que você não resolve em sua mente, o corpo transforma em doença”; “saúde mental pressupõe políticas públicas” e várias outras orientações, dicas e reflexões que têm o poder de chamar a atenção de todos para os cuidados consigo, com os outros e, também, para a importância das lutas por políticas públicas em defesa da Saúde Mental de todos.
O movimento, apesar de soar válido, nos traz sinais de alerta. Assim como na famigerada Lei da Psicofobia, em que se previa punir os que agiam de forma ‘preconceituosa’ às doenças mentais (até mesmo as categorias controversas), o Janeiro Branco parece trazer um perigo consigo: o de naturalizar e culpabilizar o sofrimento mental somente no indivíduo. Esse que chamamos de processo de medicalização.
Afinal, “levar mensagens e reflexões {..} às instituições às quais esses mesmos indivíduos [pacientes da saúde mental] encontram-se entrelaçados” é naturalizar a condição e culpa individual desse sofrimento. Se o sofrimento advém das estruturas que produzem o sofrimento, qual a melhora de informar a importância da saúde mental nessas estruturas?
Assim como o Setembro Amarelo, que foi iniciado pela Associação Brasileira de Psiquiatria, com viés extremamente biologizante e nada alinhado com os debates da saúde pública, como tornar o Janeiro Branco em algo que promova a saúde e não somente em algo que seja persecutório e estigmatizador?
Talvez esse seja o limbo que a saúde pública da américa latina sempre esteve enfiada. Quando o conceito de saúde passou além do biológico e passou a incluir o social, cultural e ambiental somos instados, enquanto profissionais, a opinar sobre temas que não temos ‘governança’.
Afinal, a disputa entre os termos de determinantes e determinação social é muito bem mapeada, mas para sermos mais resumidos e práticos, a pergunta é simples: qual a ‘governança’ a equipe de saúde tem em garantir a construção de áreas de lazer e convivências nas cidades? Qual a possibilidade dela influir em salários justos? Ou ainda, como garantir que um trabalhador não pense em demasia no trabalho quando ele gasta 3 horas de seu dia indo e voltando dele?
Não podemos deixar que o conceito de saúde mental seja esvaziado de seu caráter político e relacionado à luta de movimentos sociais para se tornar um processo de assujeitamento via educação da saúde. A prática ‘antiga’ da educação sanitária sempre está pronta para voltar. Mesmo que seja com o termo psicoeducação. Por isso é preciso não deixar o janeiro em branco, mas multicolorido, relembrando que o sofrimento é causado pela baixa qualidade dos serviços públicos, do envelhecimento que trazem, no Brasil, a insegurança sobre a aposentadoria, dos racismos estruturais, da violência de gênero e sexual. Afinal, deixar passar em branco a oportunidade de politizar as políticas e criar a autonomia dos sujeitos não me parece muito fiel ao projeto sanitarista brasileiro.
O recado é simples, mesmo que o ano novo nos entregue folhas em branco para escrever nossa história e planos, pouca terapêutica de libertação essa terá se a tinta que escreve essa história ainda for a do sangue derramado do cerceamento e aniquilação das diferenças.
https://www.facebook.com/PoetasAmbulantes/videos/297168794194897/
Por patrinutri
Que maravilhosa reflexão Rui. Muito bom contar com este texto por aqui, que nos faz refletir sob vários prismas as questões que envolvem a tentativa de prevenção dos diversos males de nossa sociedade.
Não é minha área de especialidade, mas fazendo parte do SUS, penso ser necessário um alerta a todos os profissionais de saúde.
Ao mesmo tempo que penso ser necessário algo que chame a atenção dos profissionais de saúde e a sociedade em geral sobre a questão do suicídio, concordo que estas campanhas vão numa direção de culpabilizar as vítimas. Como se tivesse uma escolha estando elas emaranhadas em quadros clínicos complexos.
Penso que seriam muito mais proveitosas estas campanhas se servissem de alerta sobre números que revelam o crescente desafio sobre estes casos e ao mesmo tempo no sentido de desenvolver um alerta de empatia entre as pessoas e observação dos sinais que nos rodeiam.
Obrigada por nos trazer tão profunda reflexão.
Abrasus,
Patrícia