Pode-se dizer que a política no século XX se articulou entre as forças sociais seduzidas em diferentes graus por uma dualidade de pautas econômicas e morais. Dito de outra forma, entre a garantia da subsistência e a necessidade de sentido.
No Brasil, desde 2013/2014, a predominância dos temas morais, portanto ideológicos e religiosos, se consolidou. Mesmo durante uma profunda crise econômica, mesmo diante de um ataque ao Estado de bem-estar social e aos direitos trabalhistas, a candidatura que esteve por quatro anos entrincheirada na pauta anticorrupção e na guerra contra supostas ameaças ideológicas, conseguiu surfar o ambiente de paranóia vencendo a eleição presidencial.
O medo é um fator que não pode ser tomado como uma resposta puramente racional. Não obstante, o temor possui elementos racionais e as consequências de um estado generalizado de paranóia são passíveis de estudo e compreensão.
Cabe ir muito além do julgamento moral sobre o próprio moralismo que sequestrou a pauta política. Será mais interessante perguntar sobre a gênese do medo que levou a essa explosão de paranóia em grande parte da sociedade brasileira.
Em primeiro lugar, nossas sensação de segurança ou insegurança é facilmente deturpável. Temos muito medo de ameaças imaginárias e nos movemos com tranquilidade sob situações de alto risco. É o caso de quando nossa vida depende de complexa rede de sistemas burocráticos e sistemas automatizados. Ainda é muito comum o medo de viajar de avião, por exemplo. Por outro lado, muitos se sentem seguros numa autoestrada a 110 Km/hora.
A razão disso é que por centenas de milhares de anos tivemos que confiar em nosso discernimento e em nossas reações para evitar riscos e escaparmos dos perigos. Assim, temos dificuldade de confiar em pessoas que não conhecemos ou em sistemas automatizados. Mas o fato é que é muito mais seguro viajar de avião do que em um automóvel. Do mesmo modo, dependemos de outras pessoas e sistemas complexos para termos acesso a água potável e alimentos saudáveis entre muitas outras coisas vitais.
Em segundo lugar, a vida que nos tem sido garantida pelo sistema de produção vigente é, usando o conceito de vida nua de Giorgio Agamben, reduzida a esterilidade do consumo ou a miserabilidade da subsistência. A vida sem a abundância e generosidade que permitem a arte e a busca do conhecimento pelo conhecimento, torna-se tão despida como os corpos dos prisioneiros dos campos de concentração. A subsistência pura e simples, privada da liberdade e do mistério, resta sem nenhum encanto ao perder a potência da produção de sentido.
O senso comum foi tocado por uma interpretação da sociedade tecnológica que desumaniza ou desdenha da condição humana. Ainda que não seja isso que a ciência tem dito sobre a condição humana, é bem fácil chegar a essa interpretação.
Do ponto de vista religioso a ideia de que a humanidade é o centro da existência e do universo é bastante antiga. Ela ganha espaço com o fim da predominância do mundo dos caçadores coletores a partir do início das práticas agrícolas.
Atualmente, todos os meios de difusão da informação, entre eles especialmente a internet, estão saturando nosso cotidiano com notícias que parecem privar o homem de sua suposta condição privilegiada na existência. Segundo a biologia, o homem, na natureza, é apenas mais um animal. No âmbito tecnológico, vamos descobrindo que muitas das nossas habilidades são amplamente superadas por máquinas e sistemas de inteligência artificial.
Ou seja, o ataque ao antropocentrismo ocorre em duas frentes simultaneamente. A confiança do homem em si mesmo e também em seus deuses vêm sofrendo uma profunda e acelerada corrosão.
A internet é tanto uma arena de difusão, quanto de produção de narrativas. Pois isso, estamos vendo a utilização dela como trincheira de resistência, como espaço de reação do senso comum aos efeitos da revolução tecnológica no status da chamada condição humana, especialmente em sua relação com o divino. A vida reduzida ao seu próprio mecanismo de satisfação – sociedade do consumo, ou às condições de subsistência – a sociedade da miserabilidade – é o que interpreto como a vida nua. Ou seja, a vida desprovida de mistério e de sentido, paradoxalmente. A vida mecanicamente explicada perde a metafísica, perde o encanto, torna-se nua.
Um javali jamais vai colocar um desodorante, jamais vai querer ir além do que é. Desse modo, um ser humano plenamente descrito e entendido como mecanismo, jamais poderá se sentir o que pode desejar ser. Será o que é. Na perspectiva religiosa, jamais poderá chegar a redenção.
O medo, o verdadeiro pânico ontológico, que coloca a questão moral antes da questão da sobrevivência, não é, portanto, algo banal ou exagerado. A ressurgência do conservadorismo em suas vertentes fascistas não é um fenômeno simples ou que possa ser rotulado como irracionalismo. Há uma complexa articulação entre condicionamentos inatos diante do incognoscível de uma narrativa que ainda não foi formulada e de outra, tradicional, que já não faz sentido.
A defesa da terra plana, da literalidade do texto bíblico, da mega conspiração globalista, da farsa da ida do homem a lua, do comunismo internacional e todas às outras teorias da conspiração são repercussões de uma forma de pensar que está sofrendo uma violenta disruptura.
O medo e a paranóia são fenômenos reais dos quais decorrem muitos efeitos. A combinação dos efeitos da disruptura de sentido que vem do desenvolvimento tecnológico – e da perda de legitimidade das narrativas teológicas – está ocasionando grandes abalos sísmicos nas relações sociais e na estrutura econômica.
A questão que temos que responder é como construir uma ponte entre a narrativa que está defasada em relação a realidade e a próxima narrativa que ainda deve ser formulada. Se o mundo antropocêntrico não encontrar uma passagem para o mundo que a revolução tecnológica está produzindo, cairemos num abismo de esquecimento.
Precisamos de uma nova definição da humanidade. Um conceito que possa nos reintegrar a cadeia imemorial da vida e da existência. Esse é o caminho para a superação do medo e da paranóia.