Drogas: velho combate

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Trabalho realizado por Nayara Maria, relacionado a estágio em CAPS-AD no Internato em Saúde Mental do Curso de Graduação em Medicina da Universidade Federal de Alagoas, sob supervisão do professor Sérgio Seiji Aragaki. 

Atualmente a dependência química no Brasil é tratada em clínicas de reabilitação, CAPS AD e hospitais (em casos de sintomas agudos). Contudo, a discussão sobre os conceitos de dependência e seus tipos de tratamento são muito mais amplos e complexos, pois envolvem questões socioculturais.
O uso de substâncias psicoativas é cada vez mais comum e difundido em todo setor social, sendo o álcool e tabaco drogas legalizadas e, portanto, mais populares. Dentre as drogas ilegais, o crack é tido como a mais letal. Esse cristal de cocaína é fumado por 0,4% da população do estado de São Paulo e por 0,2% da população mundial. Seu uso é relativamente recente, tendo surgido há 25 anos nos Estados Unidos e há 20 anos no Brasil.
A relação entre o uso e a dependência química é complexa e não possui verdades absolutas. Contudo, dados científicos comprovam que o crack especificamente tem maior chance de causar dependência física e psicológica que a cocaína inalada e maconha. Embora ainda não seja possível determinar o limiar de tolerabilidade exato de cada indivíduo, é possível estimá-lo através de fatores genéticos e externos (estrutura familiar, uso anterior de outros tipos de drogas e quantidade utilizada). Tal imprecisão faz com que uso e vício virem sinônimos.
Partindo dessa premissa, todo usuário de droga é visto como um risco a sociedade. Percebe-se através das propagandas contra o crack, as quais comparam usuários a monstros. A simbologia do desumano, perigoso e não produtivo financeiramente marginaliza o consumidor de substâncias psicoativas.
É preciso contextualizar esses fatos com a realidade social brasileira. A criminalização de substâncias como maconha e cocaína abrem espaço para a formação de um tráfico, o qual é alimentado por todo tipo de ordem social, mas tem como operador a classe menos favorecida que encontra nesse mercado ilícito um emprego informal. Portanto, ignorando toda a complexidade dessa realidade, faz-se uso da droga para potencializar e justificar a exclusão de minorias.
Assim, criou-se um combate ao usuário e não à substância. Essa visão cultural impede a instituição de um tratamento efetivo. Atualmente, no Brasil, ainda é vigente o sistema proibitivo, no qual o consumo é abolido. Cientificamente, já se sabe que a ausência da droga irá causar fenômenos desconfortáveis e desestimulantes, a exemplo da fissura e abstinência.
Questiona-se, então, se a decisão de seguir o sistema proibitivo não é cercada de concepções culturais e institucionais pré-estabelecidas. Percebe-se também que muitas vezes a dependência não é vista como patologia, sendo posta a “força de vontade” do paciente como responsável pelo sucesso do tratamento. Como consequência, há um grande número de desistências e recidivas.
Ainda falando sobre a questão médica, é importante reiterar que a dependência é doença, o uso não. Da mesma forma que não pode haver demonização das substâncias psicoativas, também não é recomendável atenuar os seus efeitos neurobiológicos. A dependência é uma doença crônica, que não possui cura e exige, além de cuidados agudos, medidas paliativas vitalícias. Portanto, o uso crônico de drogas, mesmo se legalizado, deve ser cercado de conhecimento científico. É incoerente e irresponsável compará-lo à prática tecnológica patológica ou à compulsão alimentar, já que possuem proporções e impactos diferentes. Banalizar o consumo é assinar um certificado de incompreensão sobre o tema e abrir margem para diversos malefícios – abrangendo a esfera social, econômica e médica-.
Surge então o programa de redução de danos, uma política de drogas democrática. Seus principais objetivos são: aceitar o uso racional e posicionar o paciente como autor de sua própria jornada. O que não significa abandoná-lo a própria sorte, pois haverá uma equipe acompanhando sua evolução de forma integral. A grande diferença é que ao assumir com sinceridade o hábito das drogas, a relação do paciente com a equipe de saúde torna-se mais forte e produtiva. Abrir mão da hipocrisia do não uso é um passo para ganhar a confiança do paciente e torná-lo autossuficiente. A exigência da abstinência é massacrante para o paciente, sua autoestima é posta à prova e, em caso de insucesso, é maior a chance de um uso ainda mais exacerbado. O exercício de autonomia e autocuidado são extremamente benéficos e necessários durante a caminhada para a sobriedade funcional.
Tendo em vista tais falhas, é difícil compreender os reais motivos para a não implantação do sistema de redução de danos. O primeiro motivo já foi introduzido: questões legais. Juridicamente, as leis brasileiras são imprecisas em relação ao que é, de fato, crime. Os limites entre tráfico e consumo são extremamente frágeis e isso dificulta a possibilidade de um uso maleável.
O segundo motivo é cultural, sendo a religião um dos principais pilares nessa construção social. Há uma negação ao prazer e alteração do nível de consciência. Assim, abomina-se o uso de drogas e o associa a ideia de pecado ou fracasso. Tendo em vista que o tratamento da dependência química é dispendioso e ainda  escasso no sistema público, instituições religiosas tem papel marcante em comunidades mais carentes. Há o oferecimento de reabilitação gratuita ou a baixo custo a quem não tem acesso a esse tipo de serviço.
Como exemplo de um sistema de redução de danos já implantado, podemos citar o Programa de Braços Abertos na cracolândia de São Paulo. Em um resumo bem simplista, a grande diferença desse projeto é o que antecede o tratamento de fato. O primeiro passo é a “re-humanização” do usuário. Oferecimento de comida, abrigo e higiene pessoal. Retomar naquele indivíduo valores humanos básicos sem a exigência de abstinência.
Para tanto, é preciso integrar diversos serviços para que o usuário seja visto e tratado de maneira holística, tendo todos os atendimentos necessários. Dentre as secretarias envolvidas, temos: saúde, desenvolvimento social, segurança, habitação, cultura e educação – tanto no âmbito municipal como estadual-.
Há grandes dificuldades para a implantação desse projeto: interação entre instituições, não aceitação da sociedade e descentralização do programa. Esse protótipo foi elaborado especificamente para a cracolândia, que tem como ponto facilitador o fato de agregar um grande número de pacientes em pequeno território.
Contudo, é possível implementar a redução de danos nos instrumentos citados no começo desse texto: clínicas de reabilitação, CAPS AD e hospitais. Para tanto, faz-se necessária a individualização do tratamento e extensão da equipe de saúde. Por fim, a solução da dependência química parece estar apontando para um ambiente empático e acolhedor, que use da sinceridade como principal instrumento de trabalho.