Indissociabilidade da gestão e da atenção no SUS: um olhar antropológico
Micro Ensaio articulando os conceitos presentes em
Nós dissociamos: Operamos disrupturas entre o que é diverso em suas múltiplas formas, entretanto, integrado e sinérgico em princípios e funções. A divisão social do trabalho, as relações de paternidade e maternidade, todas as relações humanas: Estas formas de interação, não podem ser precificadas num sistema de dívidas e crédito. Elas são mútuas, o que implica em reciprocidade e solidariedade.
A separação dessas esferas da vida supõe equivalências que não podem ser calculadas nem estabelecidas matematicamente. Assumimos, equivocadamente, um princípio econômico comercial no âmbito das relações humanas. Separamos o que é integrado e fazemos relações de débito e crédito num contexto em que isso não é apropriado.
Relações humanas jamais podem ser quitadas como ocorre constantemente nas operações comerciais.
A quitação de uma relação humana implicaria numa conclusão como a que encerra a relação comercial no ato da troca. Nesse caso não é possível estabelecer um consenso sobre a equivalência do valor em moeda com o valor do que consiste e constitui a relação. Assim, relações humanas não podem ter preço.
Se investigarmos os sintomas da degeneração nas relações sociais não encontraremos apenas seus efeitos: perda da capacidade de dialogar, notícias falsas, perda das habilidades cognitivas, solidão e perda de sentido existencial… A mercadorização das interações humanas está no cerne destes fenômenos. É, em última análise, o efeito de colocarmos um rótulo de preço no que, por princípio, não pode ser quantificável.
David Graeber, em “Dívida: os primeiros 5 mil anos”, propõe o seguinte exercício de imaginação: Como um pai poderia exigir a quitação de uma dívida, quantificável em dinheiro, referente aos gastos efetuados na educação e cuidado com seu filho? Se fosse possível precificar isso na forma de um valor numérico (uma certa e exata quantidade de dinheiro), o fato do filho quitar essa dívida liberaria um da relação com o outro.
Obviamente, a primeira ideia que nos ocorre é que não há preço para remunerar o final da relação pai e filho. Nem a morte, ao menos para o que vive por mais tempo, é capaz de a finalizar. Há, a despeito das crenças generalizadas, muitas dimensões da vida humana que não se reduzem aos cálculos monetários.
Gestão e cuidado, são o exemplo que quero usar no âmbito da Política Nacional de Humanização do SUS. Essas dimensões são diversas entre si. Entretanto, são indissociáveis e complementares na realização de seus objetivos fundamentais.
Uma não deve nada a outra. Uma não tem crédito enquanto a outra é devedora. Ambas se integram numa relação de mútua responsabilidade e solidariedade. O cuidado do usuário/ contribuinte/ cidadão/ ser humano pressupõe a inseparabilidade e complementaridade das duas dimensões. Quem está na função da gestão não está servindo de forma acessória a quem atua na atenção. Nem o contrário. A realização do cuidado é o efeito da plena integração entre gestão e atenção, que envolve também os usuários na forma institucional das instâncias do Controle Social.
O resultado dessa indissociabilidade consiste no melhor sentido do que chamamos de civilização ou sociabilidade tipicamente humana. É esse um dos melhores sentidos da máxima de que saúde não é mercadoria.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Muito legal a tua associação com as idéias do antropólogo David Graeber.
Embora ele mostre a impossibilidade de se cobrar um investimento na educação dos filhos em termos financeiros, já ouvi em minha prática clínica este desejo neoliberal de muitos pais e mães. Espresso em outros tipos de “moedas” de troca.