O fenômeno mais importante e determinante na formação da sociedade brasileira é a escravidão. Segundo Jessé de Souza, disso decorre uma tradição extremamente perversa: o sadomasoquismo seletivo. Há os nascidos para infligir dor e os nascidos para suportar a dor.
Existe no Brasil um sadismo difuso em relação ao corpo dos pobres e miseráveis. As maiores vítimas são os negros. Devido ao habitual abuso e estupro das escravas africanas, a maioria de nós somos mulatos. Esse termo vem da denominação de um animal nascido para o trabalho pesado e montaria, sempre abaixo de chicotadas. Desse modo é que o sadismo em relação aos pobres, negros e mestiços é uma característica marcante de nossa cultura.
As expressões de alegria, felicidade e júbilo – nos extratos sociais das classes médias brasileiras, mas também entre uma pequena parte dos pobres e miseráveis – expressa esse prazer em ver os corpos dos pobres serem maltratados e aviltados na forma simbólica da prisão de Lula. Esse seria um sinal reconfortante de que nada mudou neste início do sexto século de existência de nossa nação.
A condenação de Lula não trata dos supostos crimes pelos quais ele foi processado. As suspeitas e hipóteses levantadas acerca das condutas de Lula se aplicam a qualquer governante do país desde a constituição de 1988, pelo menos. A razão de ter existido uma operação Lava Jato (com procuradores e magistrados orientados por ordem do departamento de estado dos EUA) para investigar a corrupção nos governos de esquerda não é a busca pela fim corrupção. Ela decorre da convicção de que apenas um determinado tipo de corrupção – que é vista mais como ruptura da ordem hegemônica – não pode ser tolerada. Ou seja, corrupção num contexto de redução das desigualdades sociais e redistribuição de renda precisa ser impedida a qualquer custo. A outra, tradicional, é tolerada e até bem vinda.
As criptas ideológicas onde Dallagnol e Moro professam suas mais caras convicções não temem a corrupção tradicional de FHC, Sarney, Renan, Maluf, Aécio e companhia. A corrupção intolerável é aquela que se dá num contexto de emancipação da classe oprimida em nosso país. Durante toda a campanha que arregimentou e seduziu a parte mais conservadora da classe média brasileira, Lula jamais foi tratado como um indivíduo. Os supostos crimes de Lula eram a marca, a prova cabal, de que todas as pessoas que compartilham com ele a mesma visão de mundo eram igualmente criminosos ou sociopatas.
Sérgio Moro e Dallagnol sabem que condenavam simultaneamente Lula por seus crimes e, (in)confessadamente, pela visão de mundo de Lula. Percebam que ninguém consegue atacar Lula em mais de uma frase, sem atacar igualmente as visões de esquerda. Moro e Dallagnol não escondem que vêem o mundo de modo diferente do de Lula. E isso deveria destruir a isenção de ambos para julgar e acusar em nome do Estado e de uma constituição democrática. Eles só podem se alegar como isentos se suporem que sua visão ideológica é a expressão da verdade última. Em todo o texto do processo de lula saltam das entrelinhas uma condenação ao governo de Lula e ao pensamento de esquerda.
Numa sociedade democrática não existem versões ideológicas que possam se impor como a verdade última. A diversidade de modos de ser e pensar é a marca de um regime onde a ordem jurídica decorre da afirmação dos direitos humanos fundamentais.
O estado de direito depende da confiança que sociedade deposita nas sentenças judiciais. Uma sentença com a qual milhões de pessoas (e não apenas as partes) discordam, evidentemente, trata de algo além do que a interpretação sobre os fatos que constam nos autos do processo.
Lula não é ladrão. Não está sendo condenado por ser ladrão.
Lula precisa sofrer no seu corpo as chagas que habitualmente são impostas sobre os corpos dos pobres e miseráveis porque ousou manter, mesmo na condição de líder mundial, sua identificação com os pobres e miseráveis.
Por último, precisamos lembrar que se o sadomasoquismo é uma marca na nossa cultura, precisamos apontar onde a contraparte ao sadismo se manifesta. Os estratos médios se alegram pela dor dos pobres com uma secreta satisfação de que aquela dor não ultrapassa os limites entre o asfalto e a favela. Mas também há muitos que toleram injúrias impostas pelos donos do mercado financeiro mundial, pois em seus pequenos confortos de classe média se deleitam com a dor dos miseráveis.
Entretanto, esses mesmos remediados amargam a existência no medo constante de que um dia as mulas rejeitem a montaria e se revoltem contra a chibata. A histeria nas comemorações da prisão de Lula, também deseja calar a voz da consciência a sussurrar:
– Qual será o destino dos votos da maioria dos brasileiros depois do espetáculo sádico a que estão sendo expostos todos os brasileiros que compartilham muito da visão de mundo de Lula? É aí que eles começam, mesmo com o impedimento de Dilma, mesmo com a condenação e prisão de Lula, a exigir uma intervenção militar.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Tudo isso, Marco, se soma ao avanço neoliberal e sua consequente imposição de um modo de vida que descarta seres humanos não conformes às injunções do capital.