LUTA ANTIMANICOMIAL E A URGÊNCIA DA DESTRUIÇÃO DAS RACIONALIDADES COLONIAIS E CARCERÁRIAS

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LUTA ANTIMANICOMIAL E A URGÊNCIA DA DESTRUIÇÃO DAS RACIONALIDADES COLONIAIS E CARCERÁRIAS (MANICOMIAIS)

Lucas Luis de Faria

Doutorando em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais.

E-mail: [email protected]

 

Palavras iniciais

A escrita deste texto surge de dois convites que recebi para falar da Luta Antimanicomial em cursos de Psicologia. O primeiro, na Semana da Luta Antimanicomial, em 2020, organizado pelo Centro Acadêmico de Psicologia, da Universidade Federal da Grande Dourados, da qual tive a alegria de compor enquanto estudante e fazer parte do processo de construção desta data como memória permanente no curso. O segundo, em 2022, na III Semana da Luta Antimanicomial, da Faculdade Integradas Rui Barbosa (campus Andradina).

 Estes dois eventos me provocaram à conhecer e refletir sobre a Luta Antimanicomial a partir de alguns lugares que me situo na geopolítica do conhecimento, a saber: psicólogo, mestre em Processos Psicossociais e doutorando em Psicologia Social. Além desses marcadores, enquanto um estudante das (des)aprendizagens com os povos indígenas e grupos periféricos (Martins, 2022). É fundamentalmente desde as inquietações radicais e críticas que tenho vivido por meio do (re)conhecimento dos indígenas em movimento e das lutas populares que escrevo este texto. É uma escrita das urgências, das fronteiras e das liminaridades do hoje: é preciso destruir as racionalidades coloniais/carcerárias (manicomial) porque elas desumanizam, violentam e matam.  É o que tentarei expor neste ensaio, recuperando a memória histórica da Luta Antimanicomial e apresentando a tese da articulação entre racionalidade carcerária (manicomial) e a racionalidade colonial.

Saúde Pública e Luta Antimanicomial: uma história de luta[1]

O Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil surge da intensa mobilização de trabalhadores/as da saúde e do povo organizado (loucos[2], familiares e ativistas) na década de 1980. Sob o autoritarismo e violência do Regime Ditatorial foram forjadas as principais articulações contra os manicômios, que volta a nos assombrar nesse período histórico igualmente autoritário e violento, de retorno do conservadorismo reacionário eclodido pelo governo e ideologia bolsonarista, com intensificação a partir de 2019.

As mobilizações pela Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica, na década de 1970, são antecedentes históricos do que viria a ser a Luta Antimanicomial. A organização dos/as trabalhadores/as, ainda na década de 1970, através do Movimento de Trabalhadores/as da Saúde Mental (MTSM), primeiro coletivo pela reformulação da assistência psiquiátrica, em sintonia com trabalhadores/as pela Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica, formularam contribuições políticas e técnicas para a Luta Antimanicomial. O MTSM esteve articulado ao movimento sanitarista, compondo-o, dentre outras modos, por meio das Comissões de Saúde Mental, culminando na organização do I Congresso de Saúde Mental, em 1979.

Outro importante marco histórico do Movimento Sanitarista e do Movimento Antimanicomial é a 8º Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986, durante a Constituinte, sendo um dos acontecimentos chaves para a gestação do Sistema Único de Saúde, o SUS. Nessa conferência, temos o processo de radicalização da participação social com a presença de ativistas e movimentos sociais. A oitava, como ficou conhecida, produziu subsídios técnicos e políticos para a criação do SUS, a partir do entendimento da saúde como direito.

Da 8º CNS também saiu o encaminhamento da realização de conferências específicas, como a I Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em 1987. Desta última, surgiu a deliberação para o II Congresso de Saúde Mental, realizada no mesmo ano, em Bauru.  Deste encontro, foi produzido e publicado o Manifesto de Bauru, a carta em que os/as 350 trabalhadores/as de saúde mental assumem o desafio radical de “luta pelos direitos de cidadania dos doentes mentais (…), de todos os trabalhadores[as] por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida” (II Conferência Nacional de Trabalhadores[as] em Saúde Mental, Bauru, dez. 1987), posicionando-se:

“Contra a mercantilização da doença! contra uma reforma sanitária privatizante e autoritária; por uma reforma sanitária democrática e popular; pela reforma agrária e urbana; pela organização livre e independente dos trabalhadores[as]; pelo direito à sindicalização dos serviços públicos; pelo Dia Nacional de Luta Antimanicomial em 1988! Por uma sociedade sem manicômios!” (II CNTSM, Bauru, dez. 1987).

O Manifesto de Bauru é um importante acontecimento histórico na consolidação da Luta Antimanicomial, o qual desloca essa pauta enquanto de ordem das categorias profissionais, representativo da Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica, para os movimentos sociais de maneira ampla, incluindo os loucos, familiares e ativistas pelos direitos humanos. Desse processo, destacamos o posicionamento radical de luta pelos direitos dos doentes mentais, dos/as trabalhadores/as e por transformações sociais, expressas no trecho da carta transcrito no parágrafo anterior.

A radicalidade da Luta Antimanicomial firmada pelo Manifesto de Bauru também se situa na reivindicação de um dos lemas mais significativos do movimento: “Por uma sociedade sem manicômios!”. Dentre os desdobramentos da II CNTSM, temos a criação do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, a criação de Núcleos Antimanicomiais ramificados pelo Brasil, e o árduo trabalho ainda em processo de conscientização da sociedade sobre a violência institucional e exclusão das pessoas em sofrimento.

Como saldo dos movimentos da Reforma Sanitária, Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial temos: o fechamento de diversos manicômios e leitos psiquiátricos; a promoção de outros lugares para a loucura, a exemplo do espaço político de luta e de direitos; a radicalização da participação social na figura dos loucos, familiares e movimentos sociais; a criação do SUS; a produção de outros modos de cuidado, com práticas e dispositivos, como os Centros Atenção Psicossocial (CAPS) I, II, i, ad), Hospitais-dia, Centros de Convivência, Residências Terapêuticas, Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF).

A Luta Antimanicomial enquanto Movimento é um contínuo. Há que se fazer efetivar no cotidiano, principalmente, por seu espaçamento temporal muito menor ao da lógica manicomial, que remonta no mínimo três séculos. Essas temporalidades influenciam a incorporação das racionalidades (manicomiais e/ou antimanicomiais) e se vinculam com outras, a exemplo da colonial. A partir da provocação de Peter Pál Pelbart, de que não basta nos libertarmos dos manicômios físicos e continuarmos presos aos manicômios mentais, propomos no tópico a seguir a reflexão sobre racionalidades desumanizantes, tal como a manicomial, que exige processos radicais de libertação: a destruição.

Racionalidade colonial-carcerária: lógica constituinte dos Manicômios

“Nem sempre coube ao louco a tarefa de encarnar a desrazão. Em épocas mais remotas essa dimensão estava embutida na Natureza (antes que ela se transformasse em mera reserva matéria disponível para uma dominação tecnológica), ou no Sagrado (antes que a Ciência recentrasse nossa cosmovisão), ou na Mulher, ou no Artista, ou no Judeu (ou até, em certos momentos de febre revolucionária, no próprio proletariado). Data de apenas três séculos a confluência de todo esse índice de desterritorialização ou, para usar palavras mais simples, a concentração de toda essa força de disrupção, predominantemente na figura do louco. Eu diria então, com certo esquematismo, que o louco, esse tipo social criado a partir do século XVII e sobre quem depois se construiu um saber médico e psicológico, recebeu a “incumbência” de levar em seu próprio corpo uma dimensão desarrazoada que o precedeu de muito. A desrazão não nasceu com o louco, nem coincide com ele (Pelbart, 1989, p. 4)”.

É com esta longa e significativa citação de Peter Pál Pelbart, escrita apresentada por ocasião do Encontro de Trabalhadoras/es em Saúde Mental, em 18 de maio de 1989, em São Paulo, que iniciamos nossa provocação.

De acordo com Pelbart (1989, p. 135), os estudos de Michel Foucault sobre a loucura (História da Loucura, 1961) revela que a decisão, “pela primeira vez na história do Ocidente europeu (…), de enclausurar de forma sistemática os desatinados” ocorre no século XVII, no mesmo século em que “Descartes, fundador do moderno racionalismo, decretava a incompatibilidade absoluta entre loucura e pensamento. Enquanto a cidade trancafiava os desarrazoados, o pensamento racional trancafiava a desrazão” (Pelbart, 1989, p. 135). Esta é a racionalidade carcerária para Pelbart.

A tese que propomos aqui é de que a experiência, desumanizada e desumanizante, de enclausuramento e incompatibilidade entre loucura/pensamento, produzida na Europa durante o século XVII, tem como antecedente histórico outra dicotomização, fundada pelo processo colonial, de alma-razão(pensamento)/corpo-natureza atribuída como princípio legitimador da desumanização, dominação e exploração colonial dos povos indígenas da América Latina e o dos povos negros traficados da África, a partir do século XVI (Quijano, 2005).

A condição desumanizada instituída/atribuída aos loucos em virtude da desrazão no século XVII, que permitiu seu violento processo de enclausuramento/encarceramento, já havia sido (continuou e continua sendo) experimentada pelos povos indígenas e negros pela invenção da inferioridade racial pautada em princípios coloniais do século anterior. A compreensão colonial-racista de questionamento da (in)capacidade de alma/razão dos povos indígenas e negros justificou, e ainda justifica, a desumanização de seus corpos-territórios e as práticas sistemáticas de violência colonial (Quijano, 2005; Gonçalves, 2019; Faria, 2021). Isso é o que estamos nomeando aqui como racionalidade colonial.

O ponto articulador entre as (ir)racionalidades colonial e carcerária é o processo de desumanização dos corpos-territórios e subjetividades como princípio legitimador das práticas desumanizadas e violentas, que impactaram e impactam de formas diferentes pessoas, grupos e sociedades, mas de modo igualmente cruel e perverso. Aos povos indígenas significou (e significa): a invasão e expropriação de seus territórios; a negação, inferiorização e apagamento de seus conhecimentos e práticas; a imposição de outros modos ser e viver; o genocídio e etnocídio, dentre outras (Quijano, 2005). Aos povos negros, próximo aos mecanismos utilizados contra os/as indígenas: a desorganização de seus modos originários; o sequestro e tráfico de grupos, famílias e sociedades; o processo de inferiorização e apagamento de seus modos de conhecer, ser e viver, e imposição arbitrária de outros; a imposição do trabalho escravo; genocídio e etnocídio, dentre outras (Kilomba, 2019). Aos loucos: o enclausuramento e encarceramento manicomial; a destituição dos seus sentidos e subjetividades; o aniquilamento simbólico; a ruptura dos vínculos com mundo externo aos manicômios; as práticas de violência e tortura, dentre outras (Goffman, 1961/2001; Pelbart, 1989).

“Libertar o pensamento dessa[s] racionalidade[s] carcerária [e colonial] é uma tarefa tão urgente quanto libertar nossas sociedades dos manicômios. Isso significa que no plano de nossa geografia cultural e política é preciso recusar o Império [Colonial] da Razão (…) É preciso desmontar esta[s] racionalidade[s], é preciso deixar nosso pensamento ser invadido pela desrazão – o que não significa optar pela irracionalidade, que não passa de uma razão camuflada, Razão de Estado, de Raça ou de Religião -, mas de praticar um trânsito com tudo aquilo que os loucos nos sugerem, embora eles mesmos, por estarem imersos nesse funcionamento exclusivo, tenham sido reduzidos a corpos passivos e impotentes (em sua forma manicomial cronificada os loucos não mais evocam a desrazão, a não ser de longe e residualmente, mas a morte)” (Pelbart, 1989, p. 135).

Não basta apenas colocar colchetes às citações de Pelbart sobre a racionalidade carcerária fundada no século XVII pelo enclausuramento da desrazão e o tratamento dos/as desarrazoados/as, mas antes e fundamentalmente, a incorporação crítica e combativa à racionalidade colonial forjada pela colonização em nossas problematizações e práxis antimanicomiais, pois, como apontam Borges e Almeida (2021, p. 38), o projeto de Reforma Psiquiátrica Antimanicomial, “enquanto campo de saberes e de práticas implicadas com a desinstitucionalização”, está sujeito à inviabilidade caso não “adote abertamente o caráter central da discussão sobre colonialidade e sobre os modos de funcionamento do sistema patriarcal-racista como subsídio teórico-clínico-político das práticas de cuidado em saúde mental junto às populações subalternizadas”.

Em suas problematizações e apontamentos, Pelbart (1989, p. 136), fundamentado pelo “paradigma” ético-estético de Félix Guattari (1986), propõe, dentre outras alternativas em contraponto aos manicômios físicos e mentais, “o encontro com a desrazão”. Para Pelbart (1989, p. 137), esse encontro consiste no:

“direito à desrazão, sim, mas sem confina-la àquele cantinho privado e secreto de nosso psiquismo chamado “nossas fantasias”, onde ela costuma dormitar inofensiva. O direito à desrazão significa poder pensar loucamente, significa poder levar o delírio à praça pública, significa fazer do Acaso um campo de invenção efetiva, significa liberar a subjetividade das amarras da verdade, chame-se ela identidade ou estrutura, significa devolver um direito de cidadania pública ao invisível, ao indizível e até mesmo, por que não, ao impensável. Liberta-se do manicômio mental é tudo isso e muito mais”.

Atribuindo palavras, sentidos e circunstâncias ao “muito mais” de Pelbart da linha anterior, apontamos como urgente a libertação da racionalidade e dos manicômios coloniais. Pode parecer incongruente essa nomeação de “manicômio colonial”, contudo, pelo exposto, essa é uma denominação possível desde a articulação comum da desumanização violenta elaborada pelas racionalidades coloniais e carcerárias, sobretudo, pela provocação do campo e das pautas da Luta Antimanicomial serem compostas pelas contribuições críticas às iniquidades e assimetrias raciais e patriarcais, dentre outras, produzidas pelo processo colonial e suas atualizações enquanto colonialidades (do poder, saber e ser).

Podemos visualizar a existência de lógicas coloniais/manicomiais: no encarceramento em massa da população negra, pobre e periférica (Borges, 2019; Souza, 2020); no encarceramento e perseguição de lideranças indígenas[3]; na institucionalização de crianças Guarani e Kaiowá[4], dentre outras. Incorporar as contribuições críticas às racionalidades coloniais e as colonialidades exigem pautar, para além da libertação dos manicômios físicos ou mentais (ideológicos), a destruição radical das racionalidades carcerárias e desumanizantes, assim como as discussões e propostas abolicionistas. Esse pode ser um caminho de reinvenção da Luta Antimanicomial, considerando seus potentes acúmulos e limitações, e ao mesmo tempo, a elaboração de outros projetos de sociedade(s) e mundo(s) para além de uma sociedade sem manicômios.

Nesse sentido, entendemos que a Luta Antimanicomial deve ser acompanhada pela Luta Anticolonial, Abolicionista, Antirracista e Anti-patriarcal, dentre outras. Por outras sociedades e mundos sem manicômios, colonialidades, prisões, racismo e patriarcado. Como afirma Basaglia, referência antimanicomial para o mundo, “quando a instituição destrói e mata, não há solução de compromisso possível, pois seria um compromisso com a morte”.

Em um sentido propositivo, em sintonia com as contribuições de Pelbart (1989), assim como o encontro com a desrazão, o encontro e caminhar lado a lado com os povos subalternizados e marginalizados pode ser um caminho de libertação, de (des)aprendizagens e de(s)colonização das racionalidades desumanizantes. Talvez essa problematização não traga nada de novo, principalmente se retomarmos esse trecho do Manifesto de Bauru:

“O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres” (II CNTSM, Bauru, dez. 1987).

Assim sendo, e mesmo incorrendo na armadilha das repetições e do “novo que já nasce velho”, insisto nessa direção, nem que seja apenas para chamar atenção para fragmentos antigos ainda vigentes: enquanto existir um manicômio sequer e ainda pairar sobre nós racionalidades desumanizantes, há que se afirmar a luta pela libertação coletiva! A libertação da qual propomos caminha na direção do que Quijano (1992, p. 19, tradução nossa) afirma como “descolonização epistemológica para dar passagem a uma nova comunicação intercultural, a um intercâmbio de experiências e de significações” e  “libertação social de todo poder organizado como desigualdade, como descriminação, como exploração, como dominação” (p. 20). É a destruição das racionalidades coloniais e carcerárias (manicomiais) para emergência de outras racionalidades, múltiplas e humanizadas.

Considerações para os nossos tempos

Os manicômios, ainda com leitos psiquiátricos nos dias de hoje, eram/são verdadeiros laboratórios de repressão e aniquilamento de existências dissidentes. Nos manicômios eram/são arbitrariamente depositados para a morte desobedientes de todas as ordens: sujeitos inadaptáveis à “normalidade” (loucos), mulheres rebeldes às lógicas patriarcais de dominação masculina, pessoas com deficiência, usuários de substâncias psicoativas, e demais indesejados sócio-políticos. Os manicômios foram/são experiências autênticas de campo de concentração, depósito de indesejáveis, experimento de tortura e brutalidade contra a vida e subjetividade.

A partir de 2015 as lógicas manicomiais retornam como ameaça para os povos com a nomeação de Valencius Wurch[5] (psiquiatra coordenador do maior manicômio da América Latina fechado apenas em 2012 pelo Ministério Público) para a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. A nomeação de Valencius compõe o cenário de crise política do governo do PT que passa então a negociar os princípios do SUS e os acúmulos da Luta Antimanicomial. O desmonte da rede de cuidado psicossocial está ancorado na precarização dos serviços públicos e mercantilização da saúde através dos investimentos públicos em leitos psiquiátricos (manicomiais) privados e comunidades terapêuticas para o enriquecimento de empresários da saúde e das religiões, intensificados com a políticas do governo Temer e Bolsonaro. Esta última como agente colonial histórica na realocação e fabricação do paradigma da loucura enquanto desvio a ser combatido sob as caracterizações e justificavas de demonização e feitiçaria das pessoas com distúrbios mentais.

Outro desafio e ameaça aos acúmulos da Luta Antimanicomial de nosso tempo é o retorno das práticas manicomiais permitidas e incentivadas pelo Estado, na figura do governo Bolsonaro, ao recomendar as práticas de tortura realizada pelos eletrochoques e outros procedimentos publicados na Nota Técnica nº 11/2019.

A fragilidade da estrutura estatal em manter a Luta Antimanicomial revela a necessidade de retomada da radicalidade a partir da autonomia dos movimentos Antimanicomiais articulados com outros movimentos sociais e coletividades, como propõe a Carta de 30 anos do Manifesto de Bauru “apontamos a necessidade urgente de articulação da Luta Antimanicomial com os movimentos feministas, negro, LGBTTQI, movimento da população de rua, por trabalho, moradia, indígena entre outros, a fim de construirmos lutas conjuntas” (Carta de Bauru – 30 anos, Bauru, dez. 2017).

 Apostamos nesse potente encontro de militantes da Luta Antimanicomial com as lutas anticoloniais, antirracistas, feministas, indígenas, dentre outras, para a urgente destruição de todas as lógicas de opressão, dominação e exploração que atingem os povos e pessoas marginalizadas/subalternizadas. Desse encontro de praça, ruas, pautas e trincheiras, há possibilidade de apoio mútuo e intercâmbio de experiências. A experiência acumulada de radicalização pelo fechamento dos manicômios da Luta Antimanicomial pode ser uma potente contribuição para a luta abolicionista e antirracista por uma sociedade sem prisões, assim como a luta dos/as indígenas em movimento e dos loucos podem caminhar juntas no reconhecimento político e ressignificação de suas identidades, como também a experiência histórica de reivindicação das mulheres por direitos pode estar articulada a dos/as loucos/as e indígenas. Por outras sociedades e mundos libertos das racionalidades desumanizantes!

Referências bibliográficas

Amarante, P. & Nunes, M. O. (2018). A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Revista Ciência e Saúde Coletiva, v. 23, n. 6.

Borges, J. (2019). Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Polén.

Borges, S. A. C. & Almeida, M. D. (2021). Desafios para uma reforma psiquiátrica antimanicomial: revisitando o manifesto de Bauru. Cadernos Brasileiro de Saúde Mental, v. 13, n. 37.

Faria, L. L. (2021). Psicologia em Movimento com os/as Kaiowá e Guarani: diálogos fronteiriços e desobedientes. (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, Brasil.

Foucault, M. (1997). A História da Loucura na Idade Clássica (1961). 5. ed. São Paulo: Perspectiva.

Goffman, E. (2001). Manicômios, Prisões e Conventos. Tradução de Dante Moreira Leite. 7ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva. (Original publicado em 1961)

Gonçalves, B. S. (2019). Nos caminhos da dupla consciência: América Latina, psicologia e descolonização. São Paulo: Ed. do Autor.

Guattari, F. & Rolnik, S. B. (1986). Cartografia do desejo. Petrópolis: Vozes.

Kilomba, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

Martins, C. P. (2022). (Des) Aprendizagens com as e os Kaiowá e Guarani: uma provisória cartografia da terra vermelha. In: Psicologia, Direitos Humanos e Psicologia: ética e intervenções. Orgs. M. L. Dutra & C. N. Sathler. Disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/site/psicologia-direitos-humanos-e-politicas-publicas-etica-e-intervencoes/

Pelbart, P. P. (1991). Manicômio mental: a outra face da clausura. In: Lancetti, A. Saúde Loucura. São Paulo: Ed. Hucitec, 1991. p. 129-138.

Quijano, A. (1992).  Colonialidad y modernidad/racionalidad. Revista Peru Indígena, v. 13, n. 29, p. 11-20.

Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Org), A colonialidde do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Clacso Livros.

Saúde Mental, II Congresso Nacional de Trabalhadores em. Manifesto de Bauru (1987). InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 3, n. 2, p. 537–541, 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/view/19775.

Souza, R. K. (2020). Violência embaraçada e democracia: uma crítica decolonial. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, 2020.

Notas 

[1] Este tópico é escrito fundamentado no texto “A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios”, de Paulo Amarante e Mônica de Oliveira Nunes, 2018. Faço a referência no tópico para não ser preciso inclui-la em todos os pontos finais de cada frase.
[2] Usarei o termo louco enquanto categoria histórica e política, demarcando um dos lugares possíveis para a loucura, consciente de que em outros momentos e ocasiões podemos (re)conhece-los/as pelo termo de “usuários/as”.
[3] Ver: https://diplomatique.org.br/massacre-de-caarapo-produtores-rurais-soltos-lideranca-indigena-presa/
[4] Ver: https://diplomatique.org.br/criancas-indigenas-retiradas-das-familias-o-culpado-e-o-proprio-governo/
[5] Valencius foi exonerado em 2016, após o intenso e resistente processo de ocupação “Fora Valencius” da sala da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, no Ministério da Saúde, por movimentos sociais e da Luta Antimanicomial, permanecendo 126 dias acampados/as até a exoneração em maio de 2016.