Quando o bem público vai virando um negócio – pequena contribuição para o debate atual a respeito do papel das OSs no SUS em SP
Quando o bem público vai virando um negócio –
breve comentário sobre o estágio atual da discussão sobre o papel das Organizações Sociais no SUS em São Paulo.
No último dia 15/10, o Prof. Raul Cutait (professor associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da USP e ex-secretário municipal de saúde na gestão Maluf) publicou na terceira página da Folha de São Paulo um artigo de opinião fazendo apologia da experiência de transferência da gestão dos serviços públicos de saúde para as OSs. Anexei-o a este post, para que todos possam conhecê-lo na íntegra, já que, a seguir, pretendo fazer alguns comentários sobre o texto, procurando destacar alguns pontos que me parecem ajudar a compreender melhor por onde tem andado o debate público sobre o papel das OSs na gestão do SUS no estado e no município de São Paulo.
De fato, trata-se de um texto muito representativo do caráter fortemente “ideologizado” da discussão sobre as alternativas que se colocam, hoje, para a gestão do SUS. E também da correlação de forças políticas que tem sido altamente desvantajosa para projetos comprometidos com a invenção de formas de vida mais justas, solidárias e democráticas, e altamente favorável à transformação da cidade de São Paulo num poderoso laboratório político da direita.
Acho importante lembrar que estas forças políticas, que sempre trabalharam pela manutenção dos traços mais atrasados de nossa estrutura social e política, perderam um espaço considerável no cenário político nacional nos últimos anos (pois convivem mal com um ambiente mais democrático). E é neste contexto que nossa complexa cidade vem tristemente se transformando numa grande plataforma, num grande trampolim para que estas forças busquem se reposicionar e recuperar espaço político no país.
O ex-secretário de saúde do Maluf conclama à ampliação da "vitoriosa experiência de gestão" que são as OSs. O tom só poderia ser “triunfalista”, já que o artigo é uma peça de propaganda. Poderia-se lamentar que o autor empreste a "credibilidade" de um professor universitário para conferir uma "aura" especial a um produto de propaganda política, mas não se pode ficar surpreso com esse procedimento. Nem surpreso, nem distraído: esse procedimento (de buscar "credibilidade" para a proposta no "renome" de determinadas instituições de ensino ou de grandes hospitais privados) está no centro da estratégia de derrubar resistências junto à sociedade. Contudo, os que acompanham com uma perspectiva mais isenta o conjunto da produção científica sobre o tema sabem que a questão carece de maiores estudos, que os resultados que vêm sendo encontrados são controversos e que, com alguma freqüência, são mais que tudo precários (para qualquer critério). Ou seja, a coisa mal foi seriamente avaliada mas, para o professor, “já ganhou”!
Prosseguindo na apologia, o texto sai encadeando uma série “conceitos” que suscitam uma grande curiosidade em conhecer as definições que lhe dá o autor. Por exemplo:
– as OSs são não apenas uma "vitoriosa experiência de gestão", mas também "de participação da sociedade civil": o que ele entenderá por participação da sociedade civil? (sociedade civil = organizações sociais? mercado?);
– qual a diferença entre “hospitais filantrópicos” e “com fins lucrativos”? O Hospital Sírio-Libanês não tem "fins lucrativos"? As OSs estão assumindo o encargo de gerir o sistema de saúde por “filantropia”?
São questões importantes! Devemos cobrar definições claras para estes termos por parte dos atores políticos que participam do debate, pois nem de longe elas são inequívocas e porque é na sua explicitação que as diferenças políticas das propostas podem adquirir maior nitidez.
Do mesmo modo, devemos rebater determinadas “palavras de ordem” fáceis e de grande apelo, para evidenciar sua parcialidade e a existência de outras perspectivas. Assim, de novo, apenas por exemplo, extraímos do texto algumas delas, às quais os protagonistas da Política Nacional de Humanização costumam ser muito sensíveis :
O autor diz: – "É primordial a administração plenamente informatizada".
Nós dizemos: – É primordial a administração, plenamente humanizada e democrática! A informatização é “meio”, "ferramenta", e não “fim”, nem muito menos "princípio" (fato primordial) de uma boa prática administrativa.
O autor diz:- "A qualidade de atendimento passa pelos médicos…"
Nós dizemos: – A qualidade de atendimento passa por toda a equipe multiprofissional, pelo respeito e pela preocupação com a qualificação de todos os trabalhadores, o que inclui também as práticas de gestão adotadas. O modelo de gestão é indissociável do modelo e da qualidade da atenção! Nesse parágrafo, percebe-se com nitidez que, ao modelo de gestão “gerencialista” que vem sendo proposto, corresponde claramente um modelo de atenção médico-centrado, que sabemos o quanto se contrapõe à realização do projeto tecno-assistencial do SUS. Temos base para afirmar que este último (que não é uma versão financiada com dinheiro público do projeto tecno-assistencial dos serviços de saúde privados) é mais resolutivo perante as demandas de saúde da sociedade brasileira contemporânea, porque propenso a uma leitura mais ampla e solidária das necessidades de saúde, de mais baixo custo e menos iatrogênico.
São apenas alguns contrapontos! Mas é claro que cada um destes focos de argumentação precisariam ser melhor desenvolvidos para que não se transformem apenas em tantas outras "palavras de ordem", o que é tarefa para um outro momento. Por ora, o intuito é apenas levantar alguns pontos que me parecem caracterizar bem algumas tendências que se apresentam neste debate.
Nesse sentido, finalizo destacando um último ponto bastante esclarecedor do artigo (tanto mais quanto a defesa deste ponto parece ser seu principal objetivo), pelo que revela das tendências realmente embutidas nesta fórmula de “privatização da gestão”, ao menos em São Paulo:
O autor diz:- "As instituições filantrópicas competentes para atuar com o Estado em OSS são finitas. Portanto, uma futura relação com entidades privadas lucrativas para fazer a gestão terá que ser pelo menos discutida…"
Aqui surge, com todas as letras, a formulação daquilo a que somos, cotidianamente, levados a desconfiar nos processos em curso no estado e município de São Paulo: prepara-se o terreno para entregar, abertamente, a gestão pública da saúde a “homens de negócio”!
E ninguém é tão ingênuo para não saber o que acontece quando um “bem público” é entregue a “homens de negócio”… Basta ver o estado da atenção à saúde nos EUA, do qual Obama vem tentando livrar a sociedade americana, marcado pela exclusão, iniqüidade
, custos econômicos elevados e altos índices de iatrogenia.
Bem, estão lançadas as provocações!
Que sirvam apenas para disparar uma reflexão coletiva, que nos qualifique melhor para este acirrado debate. A aposta, como sempre, é de que esta Rede constitua um espaço privilegiado para ampliarmos coletivamente nossa inteligência sobre os processos que estamos vivendo.
Por Marco Pires
De 65 à 75 Bilhões de reais. É impossivel evitar um pequeno fio de saliva que escorre da boca. Logo será uma espuma branca emoldurada por uma carranca sorridente num gesto de apontar o dedo. Isso num pais que só recentemente ascendeu a categoria de emergente. O gigante, antes eternamente em desenvolvimento e "varado" de bolsões de miséria terceiro-mundista agora tem dinheiro para levar políticas sociais até os seu povo. É o novo eldorado do capitalismo.
Toda a cadeia de produção que envolve a saúde desde a pesquisa e produção de métodos, técnicas, aparelhos, e dicamentos está em ebulição.
Cada vez mais o conhecimento acumulado em milhares de anos irá trazer mais possibilidades de afirmação da vida. Cada vez mais os senhores das "luzes", da "produção" e da "eficiência". Os avatares da racionalidade cartesiana terão a fissura que os viciados em crack conhecem bem. Cada conquista humana, purgada de seu potencial de gerar o comum, da potência de significar o humano em tudo que nos cerca, será embalada e despachada ao mercado em busca de seus consumidores. Tudo se reduzirá em seu delírio louco ao que se consome e todos serão o que consmem. Como podemos pensar em universalidade, equidade e integralidade. Os princípios do SUS refutam unificação do mercado de bens simbólicos em torno do deus mercado e do valor monetário.
Evidentemente que o produto é que definirá o consumidor, a coisa definirá o humano. E por isso que nada pode escapar a lógica de gestão mercadológica. Todos os bens simbólicos devem estar reduzidos ao valor e ao sentido monetário. E deste sentido derivarão todos os demais. Um nazifacismo reificado na linguagem.
Foi este o sentido de guerra que expressei na mensagem sobre a vitrine de São Paulo. Não pode haver um SUS nas bases democráticas e sociais que inscrevemos (com a energia das vidas dedicadas e perdidas no combate à ditadura) na carta magna. Ele, o SUS, deve ser profanado, como toda e qualquer lei que não emane e reverbere a lei do mercado.
Por isso, afirmei que não há trégua possível: Nos EUA, Obama é socialista, no Brasil nós temos que ser eles "os senhores da racionalidade cartesiana" do humanismo facista de mercado.
Pois eles se vestem com os mesmos jalecos que usamos, citam seus títulos acadêmicos pagos com bolsas de estudo alimentadas com recursos públicos. Pois é, estão entre nós, remunerados pelo dinheiro público, nas universidades e, mesmo dentro do MS e do SUS. Celebram com a autoridade dos mandatos eletivos os contratos que ferem os ideais da reforma sanitária, da democracia.
Mas reafirmo: O dinheiro não é mais do que um valor simbólico entre todos os valores e bens que humanidade produziu. O mercado monetário não é mais do que um dos muitos mercados que se relacionam a economia da vida.
Por traz da vitrine anti-SUS de São Paulo está sendo aquecido o ovo da serpente de quem reduzindo os valores a um único e fundamental valor, esconde o niilismo e a pressa em se autodestruir, levando a nós todos em seu suicídio.
Querem, a morte com M maiúsculo, ao querer que só os que possuam a chave do código da lei do mercado – muito dinheiro – possam ter muita vida. Vida é por definição vida plural e farta. Ao selecionar entre todos os poucos que terão acesso ao melhor é evidente que negam a vida.
A fartura da vida está em cada célula morta. Não há valor ou escasses que exija um leilão da dignidade humana.