Cuidado, educação e antropogênese

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Sempre que nos referimos a um trabalho bem feito nos referimos a ele usando o verbo fazer. É como reivindicar o justo pagamento pelo trabalho bem feito. Desde a invenção do valor moeda, até a instituição do dinheiro como valor universal de troca e intercâmbio, fazer por merecer é um imperativo moral que coloca a ficção do indivíduo autônomo no centro da estruturação das relações sociais. Esse é o fundamento do Estado liberal contemporâneo, da democracia e do capitalismo.

No entanto, quando nos referimos ao ato de educar ou ensinar usamos a referência a dádiva e ao dom, através do verbo dar. Esse uso é tão espontâneo, quanto o zeitgeist, o espírito do tempo. Jamais foi combinado de forma consciente, mas é um vestígio arqueológico da ancestralidade maior de fundamentos para as relações sociais que hoje estão ocultos pelo poder avassalador do capital simbólico monetário.

A educação é tarefa dos pais, em primeiro lugar, e dos professores na forma institucional da educação pública no Estado constitucional moderno. No âmbito familiar a troca de dons e dádivas está relacionada ao processo (bio)antropológico de hominização. A emergência da máquina antropológica coincide com o aprofundamento da prematuridade dos recém nascidos humanos. Na medida em que o período de aquisição da autonomia por parte das proles humanas se estende por vários anos, a maturidade e a identidade são resultantes da interação do feto ainda no ventre materno e ao longo de seu desenvolvimento. Não há indivíduo, nem identidade, bando, tribo, sociedade e civilização, sem a interação afetuosa entre os provedores/educadores e sua prole.

As relações familiares, portanto, são da ordem imemorial na espécie humana. Ela existe antes do desenvolvimento da linguagem, antes do aparecimento da escrita e do dinheiro. As trocas humanas mais intensas, profundas e afetivas não são passíveis de conversão ao valor moeda.

A consequência disso é que o fator mais decisivo para a economia e a coesão social é exercido com gratuidade absoluta em qualquer sociedade. Maternagem, paternagem e cuidado são atributos que lastreiam todo o potencial humano. No caso da educação familiar esse é um consenso tácito e universal.

Já no ofício de ensinar a região fronteiriça entre a troca de dons e dádivas, inerente ao ato de ensinar e educar é gigantesca. Pode-se concensuar que o trabalho em educação não se reduz a nenhum dos pólos – o da troca monetária e o do educar como gesto afetivo – mas os integra.

Educar e ensinar constitui uma atividade, como o cuidado materno e paterno. Mas também o ultrapassa e envolve as trocas entre capital e trabalho. É, do ponto de vista do trabalho, uma atividade que só adquire status e relevância socioeconômica se for bem e adequadamente remunerada.

Mas é importante reconhecer a precedência e perenidade das inter relações humanas na própria antropogênese. O que nos permite atingir a plenitude dos atributos humanos e a própria história e seus processos civilizatórios, a economia e relações sociais é antes de tudo, e permanentemente, o fluir de dons e dádivas na forma de cuidado, afeto e amor. Esse é o marco zero.

Nesse sentido, a sociedade capitalista coincide com um estado patológico da humanidade. O fato de o capital monetário se impor sobre toda a imensa diversidade de capitais simbólicos que a capacidade de criação humana construiu ao longo de milênios, indica um estado de decrepitude e apodrecimento da civilização humana global.