O custo de uma espiadinha: como a quebra de sigilo em um estabelecimento de saúde afeta os envolvido

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Família reunida. Vários outros amigos e conhecidos. Todos se preparavam para mais um rito de passagem doloroso que vivíamos. Meu celular tocou; um número desconhecido. Ao atender, uma surpresa.

– Eu falo com a filha da dona Isabel Dias?

Respondi que sim. E ele continuou.

– Sou o doutor Fred. Sou médico aqui no hospital que a dona Isabel faleceu e eu quero falar que ela morreu por erro médico.

O quê? Foi o grito que ecoou pela casa e todos olharam para mim. E o médico prosseguiu.

– Vendo o prontuário médico, vi que ela foi morta por falha na cirurgia. Eu já passei para o jornalista e ele vai ligar para a senhora.

Respirei fundo e perguntei para ele: como é?

Então, ele foi me contar que pegou o prontuário médico dela, leu, analisou e queria que eu denunciasse o cirurgião. E foi contado que um “profissional” que estava na equipe da cirurgia tinha mostrado para ele, porque tinha visto o erro. Ele estava me ligando porque não suportava erro e queria “justiça para dona Isabel”. Disse ainda que era médico no mesmo hospital e passou a imagem de ser um defensor da verdade, do que é certo, dos bons costumes.
Eu ouvi atentamente enquanto ele falava. Ao final, respondi que ele não tinha o direito de falar sobre o caso e o desautorizei. Deixei claro que acompanhei pessoalmente todo o processo, no qual ele sequer estava envolvido. Eu não o conhecia.

Daí, ele seguiu afirmando que minha mãe tinha sido morta pelo seu colega de profissão e tentou de tudo para me convencer. Mandei que tivesse respeito e desligasse. Lembrarei de toda essa conversa por toda minha vida.

Logo após, um jornalista me ligou e deixei claro que a história era inverídica. Outras pessoas da minha família foram abordadas tanto pelo médico, como pela imprensa. E assim, compartilho um dos maiores traumas da minha vida.

Ética engavetada por interesse pessoal

Foi porque um médico não gostava de outro. Sim, isso mesmo. Ele tinha rixa pessoal com o pai do cirurgião da minha mãe e resolveu denunciá-lo. Para a imprensa, o caso foi resolvido pela minha posição. Mas ele foi atrás do CRM – Conselho Regional de Medicina. Sua intenção era que o CRM denunciasse o cirurgião, já que ele, não poderia. Tudo que ele sabia era de ouvir dizer e uma cópia de prontuário que poderia ter sido alterada.
Em busca de um erro do colega, o médico desrespeitou a minha mãe e a minha família. Bem como, desrespeitou as normas vigentes no Brasil.

Longe de qualquer vínculo com nosso caso, ele, em fofoca profissional, buscou acessar os dados sigilosos da minha mãe para verificar a evolução do prontuário dela.

Se eu quisesse, poderia ter processado o hospital. Afinal, como um hospital pode ter a guarda de dados tão fragilizada?

O médico fofoqueiro, a quem vou chamar de A, sem conhecer o histórico da minha mãe e toda sua jornada, contou, com o seu olhar julgador, a versão dele sobre a cirurgia da paciente. Imaginem o julgamento e as ênfases para encantar. E ele deu todos os dados para que o médico desconhecido pudesse ir atrás do prontuário e verificar se teve ou não erro.

Alguns dizem que o próprio A mostrou o prontuário. Outros, que o sistema de guarda do hospital era aberto para que qualquer um pudesse ver os prontuários. Isso mesmo, qualquer profissional que atuava lá na época via os dados. Para o arquivo físico, a entrada era tranquila, livre. E para o que tinha no computador, também era de fácil acesso. O resultado: independente de ter vínculo com o caso, todo mundo poderia ver o que estava escrito. Mesmo quando o objetivo era só fofocar, fazer intriga.

Os efeitos da escolha errada

No caso, o médico A, que estava no Centro Cirúrgico, teve dúvidas da conduta do colega. Eticamente, o que ele deveria ter feito? Procurado a diretoria técnica do hospital e denunciado. Ter registrado no canal de notificação de eventos adversos. Ou até mesmo, no canal de denúncia. Outra coisa: poderia ter acionado a comissão de prontuário, para revisão.

Quando o médico A escolheu o caminho do disse me disse e encurtar distâncias fazendo cópia do prontuário sem processo interno, trouxe muito sofrimento para todos os envolvidos. Para mim, especialmente. E sabem o motivo?
A história, o boato, começou a circular e a minha família, a questionar. Me posicionei em defesa do cirurgião. Afinal, eu conhecia o histórico clínico, a jornada dela. Estive com minha mãe em todas as consultas e fui sua companheira nos momentos mais delicados. Tive a honra de ser a responsável legal que ela indicou em documento oficial no hospital, quando estava consciente e no uso de toda sua capacidade. Mas, pela escolha errada dos “profissionais”, vi uma teia de intriga ser formada.

Vários parentes passaram a reproduzir o discurso e a me julgar. Foi aí que me isolei, sofri e comecei a adoecer.

Após um ano, precisei passar por um procedimento cirúrgico. Tomei uma decisão que assustou muita gente: escolhi o mesmo cirurgião. Confiei a minha vida a ele. Eu tinha certeza de que ele ofereceu o melhor para salvar a minha mãe. Sabia também que ele faria o mesmo por mim.

Além disso, acompanhei a dor dele enquanto profissional que foi julgado levianamente por conta de uma fofoca. E ele, diante de todo o cenário, tinha pesquisado o que houve com o caso da minha mãe, buscou entender e teve o respeito de me informar. Minha prima, médica, foi recebida por ele, que detalhou o que havia feito. Respondeu todas as dúvidas dela. Ele fez o que era possível.

Percorremos juntos uma longa jornada de entendimento. E veio daí a minha confiança de escolhê-lo como meu médico.

Lembro que, em uma das consultas, ele me contou que tinha atendido uma pessoa da minha cidade. Ela iniciou a consulta falando que estava com medo porque tinha uma amiga que o médico matou. Era mamãe. E ele, no seu profissionalismo, virou para a mulher e disse: “eu sou o médico que fez a cirurgia”.

A reputação dele foi abalada pelo ato leviano de duas pessoas que violaram o sigilo médico e compartilharam informações com outras pessoas.
Eu fui julgada por escolher o médico da minha mãe e, mais ainda, por defendê-lo na hora das acusações.

E se fosse com você?

Penso que essa é a pergunta que todos nós devemos fazer quando estamos diante de uma situação como essa.

Pelo lado do profissional, a angústia de ser acusado pelo trabalho que se dedicou. Afinal, o apontar dos dedos fere, ainda mais quando você fez o passo a passo que o protocolo orienta. Pelo lado da família, a dor da exposição.

Toda exposição, seja de dados ou de imagens dos pacientes, tem como efeito, para eles ou para a família, uma ferida emocional gigantesca. É doloroso reviver o tempo todo a situação pelo qual você passou.
Dói ver uma foto ou vídeo expondo a intimidade, revelando o que você gostaria de guardar. Assim como dói ter que vir a público e contar de um diagnóstico médico que você sequer conseguiu assimilar, porque o jornalista X ou o influenciador Y já está sabendo. Klara Castanho que o diga. A família de dona Marisa Letícia da Silva, também.

Tenho consciência de que o caso da minha mãe é um entre vários. E ele, por anos, me atormentou. Mas deixou evidente que todo esse sofrimento poderia ter sido evitado se a postura dos profissionais e da instituição envolvida tivesse sido ética e de respeito à legislação vigente.
O clique que dá status também destrói

Está completando uma década da cirurgia da minha mãe. Ela aconteceu em 29 de abril de 2013. Desde então, acompanho e pesquiso a luta travada diariamente pelo respeito à intimidade das pessoas. E celebro o fato de que, neste período, muita coisa mudou.

O Brasil hoje tem a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados, que aumentou a responsabilidade da preservação de dados sensíveis. Mas, ao mesmo tempo, tem WhatsApp, Telegram e outros aplicativos de mensagens, pelos quais muitos insistem em compartilhar prontuários, fotos de pacientes, de casos, e histórias. E daí, só quando vaza, que isso é questionado. Mas, de verdade, é uma rotina incentivada pela própria sociedade, que quer ler sobre o estado de saúde, informações detalhadas de como está o paciente em um momento em que a família chora de dor.

Precisamos ter mais consciência do porquê a intimidade do outro precisa ser respeitada. E, mais ainda, de que o mundo digital é fascinante. Mas ele destrói.
Se o caso da minha mãe fosse hoje, eu jamais teria conseguido evitar que fosse a público. O prontuário teria circulado pelas redes sociais, a imprensa noticiaria, a história ganharia fontes diversas, e eu teria sofrido muito mais. É por isso que, há dez anos, eu estudo comunicação e saúde e tento contribuir para uma relação mais segura, respeitosa e ética. Tento fomentar o entendimento.

Eu, como pessoa, sei bem o peso de um vazamento de dados e como ele pode ser manipulado para que o outro seja julgado conforme o interesse de quem está vazando. Como profissional, sei as consequências de uma crise e a necessidade de mudar a forma como tratamos dados, imagens, pessoas.

E você, também entende que dados de saúde são confidenciais?

Ana Negreiros, mestranda em Comunicação Social pelo PPGCOM/PUCRS, especialista em Comunicação em Crises nas organizações de saúde públicas e privadas, consultora de Gestão de Riscos e Crises e responsável técnica pela WeDo Diálogo.