O percurso do ódio

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Como o ódio e o ressentimento, que são características necessárias de uma sociedade formada com base no genocídio aos povos originários e na escravidão, vão do sentimento até o assassinato? Como opinião e atos criminosos encontram círculos de sinergia em que um e outro são necessários e entrelaçados em acontecimentos?

Essa questão me persegue desde que a retórica do ódio surgiu junto com as incipientes redes sociais, por volta de 2007 e 2008, se intensificando com a ressurgência do conservadorismo fascista de Olavo de Carvalho. Eu pressenti essa onda avassaladora ainda no final do segundo mandato de Lula. Como e quando a retórica do ódio se plasma em ato é algo que tenho observado desde então.

Estou no ônibus, indo de Porto Alegre à Passo Fundo. Duas pessoas conversaram durante mais de uma hora sobre a natureza de suas visões de mundo, suas histórias de vida e como chegaram, por vias próximas, mas diferentes, a apoiar Jair Bolsonaro e odiar a esquerda.

Homens brancos, um com mais de 50 anos e o outro com mais de 70 anos, eles não apareceram, nem formaram seus posicionamentos políticos nos últimos 5 ou 6 anos. Suas vidas são coerentes com o que estão fazendo nesse momento que estamos passando.

Ouvindo suas histórias percebi que são de origem pobre. O mais velho é aposentado da recém privatizada Companhia Estadual de Energia Elétrica – CEEE. Entrou na empresa por indicação de um irmão e em troca filiou-se no partido da Ditadura Militar, a antiga ARENA. Antes de iniciar a conversa, falou com a filha, com o áudio do celular no viva voz, Ela estava feliz com sua iminente visita e disse que pouco antes estava na igreja orando.

O outro, um pouco mais jovem, se disse profissional do direito. Contou que conseguiu se formar bacharel apesar de ao mesmo tempo sustentar uma grande família. Afirmou ser contra os latifundiários porque eles conseguem tudo de graça de qualquer governo e que, não gostava da ditadura porque eles não davam ao pobre o direito de estudar para poder se tornar um empreendedor bem sucedido. Narrou como teve um cargo político e pediu para ser exonerado porque recebia sem trabalhar. Disse que votaria no Ciro Gomes, mas que no segundo turno vota em qualquer candidato, menos no Lula.

Os dois contornaram a opinião divergente que sustentam sobre o serviço público, dado que um trabalhou a vida toda para o governo, na CEEE, e o outro esteve eventualmente em um governo municipal, para centrar fogo no antipetismo. Claramente eles buscavam o conforto de não pensar criticamente ou pensar sobre problemas para os quais não tivessem respostas prontas. Tive a densa sensação de que a dúvida não encontra espaço em suas consciências, embora governe o inconsciente dos dois.

Eles temem pelo futuro dos filhos. Mas não de forma realista. Os dois se refugiam no conforto advindo da sorte e do apadrinhamento que lhes permitiu escapar da miséria. Como se isso fosse garantir de alguma forma a segurança e saúde de seus descendentes. Não lhes parece verossímil que a crise climática, o capitalismo 4.0, ou uma combinação de ambos, torne miseráveis as vidas de seus filhos e netos.

É uma forte atitude de reduzir a realidade a uma conveniência cognitiva. Como tiveram alguma sorte na vida, se imaginam como sendo ligados ao bem e a proteção de Deus. Do mesmo modo, percebem o mal como o nordestino, homossexual, feminino, comunismo…

Há muitos outros detalhes, mas o essencial é isso. Terem vivido uma vida de acordo com suas convicções ilusórias, ser a ilusão sua certeza e seu medo. Identificarem o mal com o diferente e se auto congratularam com o acaso. Entendendo as forças que os seduziram como efeitos de seus méritos imaginários ou da providência divina.

Ninguém os convidou a rir da tragédia alheia. Mas eles sabem os sentimentos que carregam em seus íntimos. Aliás, só eles sabem. Mas quase tudo neles é motivado pelo medo. O medo, por sua vez, produz ressentimento e ressentimento produz ódio.

A vida veio antes de nós todos e vai seguir de um jeito ou de outro. Espero o melhor para nossos descendentes quando não estivermos mais aqui.

Sou professor e Técnico em Enfermagem. Vi como a dor e a tragédia atingem as pessoas ao longo de 32 anos de trabalho. Ninguém sabe o dia de amanhã. Esse fato é o que nos inclina à solidariedade e na direção da afirmação da vida e à política como a busca constante do bem comum.

Esses dois homens representam alguma parte desses 30% que ainda apoiam Jair Bolsonaro. Eles estão aí nas redes sociais dando gargalhadas com as notícias sobre o assassinato de Marcelo Arruda. É o que restou em seus corações.

Eles estavam alegres com suas convicções. Alegres consigo mesmos. É assim que uma retórica de ódio leva ao gesto odiento, a cumplicidade com o crime e com os criminosos.