O ser no tempo

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O tempo é o senhor da razão. Essa assertiva contém verdades polissêmicas. Está correta em várias perspectivas simultaneamente. Além disso, temos que reconhecer que, a despeito das várias definições dos conceitos de razão e tempo, todas são provisórias ou incompletas.

Não sabemos exatamente o que o tempo é. E como a razão emerge como um efeito da experiência consciente do fluxo temporal, ou seja da ordem causal que encadeia o intelecto, a noção de tempo não é efetiva para sustentar a definição da razão.

Causa e consequência dependem da direção em que o tempo avança. No entanto, pouco além do modo como vivenciamos o tempo, sustenta a persistente ideia de que umas coisas causam as outras. Seria mais preciso afirmar que os primeiros fragmentos de segundos do universo e os eons mais longos do tempo estão integrados uns aos outros de modo decisivo. Dito de outra forma, a causa de um instante está ligada à totalidade da existência do universo.

A noção de que uma causa está associada a um efeito, decorre da clausura em que o pensamento se originou. A mente processa informações de modo bioquímico. Ela se desenvolve a partir da vida unicelular que se agrega em organismos que se integram para realizar com mais eficiência o movimento de trocas de energias com o ambiente.

O dentro e o fora, o absorver e o excretar, desenham a sensação de clausura implicada na percepção das relações entre o organismo e seu entorno. Os primeiros sistemas nervosos, em organismos multicelulares, tiveram a experiência de estar implicados em processos vitais através de uma sucessão de eventos, que vão desenvolvendo sentido, na medida em que uma memória resgata o passado na forma de uma trajetória. Essa trajetória é esboçada no impulso vital e simétrico de buscar mais vida, através de uma multiplicidade de formas e modos que avançam sobre o mundo, em perpétua expansão.

Então temos a memória, como uma coleção de instantes que a mente vai recombinando em torno do eixo de uma identidade Essa coleção caótica de instantes evocados, constituem uma história narrada para o próprio intelecto. Nossa memória nos diz que, pelo efeito assíncrono de evocações amarradas ao eixo do “si mesmo”, somos o eu que pensa. Assim, o tempo como cadeia de eventos sucessivos é violado, para com evocações espalhadas pela experiência da memória, gerar, no presente, a ideia reconstituída incessantemente do eu.

Por isso, o intelecto parece atuar em dois planos distintos.

Num sentido, segue o fluxo do tempo. Os processos eletroquímicos, que fazem disparar as sinapses, se inscrevem na ordem do tempo. Uns pensamentos sucedem os outros, no que se afigura como uma ordem de aumento do entendimento e da expansão da consciência.

No outro sentido, observando os processos mentais, de modo mais profundo e preciso, a ordem do aumento da entropia parece mais emaranhada. Pensar consiste numa constante evocação das memórias e projeções sobre o que pode estar por detrás do véu obscuro que impede rememorar o futuro. Eu sei que sou eu, porque todo o meu passado, nesse instante, como recordação e, ao mesmo tempo, como consciência instantânea, me dá uma ideia persistente de que sou, nesse instante ínfimo, o que sempre tenho sido.

Mas também sei que a coleção de memórias que caoticamente formam o texto e o subtexto que narram a história que identifico com meu eu – com eu mesmo – está se ampliando. Assim como de uma célula de meu pai e outra de minha mãe, meu corpo se formou e agora declina em sua vitalidade, meu eu se expande a cada experiência que se acumula na coleção de instantes que constituem minha existência.

De um modo existir é essa soma de acontecimentos que podem ser reunidos na memória para somar, sem destruir, mas lentamente modificar, a narrativa que me dá a constante sensação de ser e de estar mudando. Morrer, então, consiste na interrupção do processo, de registrar e rememorar acontecimentos.

Paradoxalmente, a vida do intelecto é uma revolta constante contra a disruptura dos instantes. A memória das informações acumuladas no DNA, permite que a vida navegue pelo tempo, que se infiltre pelas fissuras em suas paredes.

Nos mamíferos, e mais intensamente nos humanos e, talvez, em baleias e golfinhos, a memória como processo intelectual – e não meramente como inscrição de informações numa base de dados bioquímica e molecular – realiza esse desafio a direção crescente do grau de desordem das partículas em um sistema físico. A mente desafia a entropia.

Ainda que a mente de cada ser consciente seja destruída pelo tempo, ela só existe contra a disruptura do tempo. O intelecto se serve da simetria dos instantes. Como cada instante é parte de uma totalidade, a mente os manipula, para ampliar a si mesma, para superar o útero no qual surge.

Estamos presos na cápsula tridimensional envolta pelo espaço tempo. De modo estranho, como no movimento da luz o tempo se mostra imóvel e pleno, na morte se decide o mistério da mente.

Ela é filha do tempo espaço?

Ela pode existir sem a cadeia de eventos que chamamos de causalidade?

Tempo e causalidade existem, ou são aparências que se dissipam na medida em que a consciência se expande?