O surgimento da consciência (Outra vez?)

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O advento do que estamos chamando de inteligência artificial permite lançar a luz de uma analogia sobre o fenômeno da mente. A tecnologia, desde a revolução cognitiva, se constitui numa intervenção sobre o mundo a partir da constituição de ferramentas. Elas aparecem como o resultado do encontro da mente com ela mesma e com o mundo.

Então,  partindo do sono (sem palavras, sem linguagem e sem sentido) do instinto, a consciência emerge, transformada pelo domínio do fogo. Um modo de lidar com as necessidades prementes, tornou-se um saber.

Os primeiros seres humanos inventaram formas para gerar e manter as chamas acesas. Usaram o poder do fogo para cozer alimentos e se proteger de predadores. A esse poder, nossa mente respondeu com uma expansão movida pelas vísceras do nosso organismo.

Os alimentos e o nosso sistema digestivo encontram um novo ponto de equilíbrio. O cérebro se favoreceu dessa relação e começamos a imaginar de modo compartilhado. O instinto deu espaço para uma nova forma de relação com o ambiente. A experiência permitiu incrementar o conhecimento a partir de crenças compartilhadas entre indivíduos, bandos e, decisivamente, gerações de seres humanos.

Dessa etapa em diante o tempo da vida foi ampliado para além das informações inatas do DNA. Um novo modo de ser passou a afetar diretamente as gerações seguintes. Uma acumulação exponencialmente ampla de modos de ser e agir começou a se produzir ao longo dos milênios.

A consciência que perscruta e valora a si mesma a ponto de termos sido capazes de dar nome a nós mesmos, aos objetos observáveis e imaginar conceitos explicativos a partir de noções complexas,  surgiu de movimentos combinados da reflexão. A indução, a dedução e a abdução, combinadas, estão diretamente envolvidas nos processos do que denominamos consciência.

Ao observarmos o desenvolvimento das tecnologias de armazenamento e processamento de dados, percebemos como as chamadas inteligências artificiais se diferenciam do aparato mental que surge do funcionamento analógico do nosso cérebro.  O que nos parece consciência num primeiro momento, quando interagimos com algoritmos, é a capacidade dedutiva dos códigos de computação.

A ilusão se desfaz quando percebemos que algoritmos não são capazes de dar conta da complexidade e diversidade de aspectos da realidade. Eles são muito bons no tratamento de sistemas com variáveis básicas e estritas. Mas são fracos no tratamento de tarefas simples como reconhecer rostos e emoções. Ou seja, fazem cálculos matemáticos que vão muito além do que a mente humana é capaz e falham miseravelmente nas habilidades que a mente de um bebê se torna proficiente rapidamente através do uso da indução.

O filósofo David Hume percebeu que a frequência estatística com que os fenômenos se repetem estão no fundamento das crenças que compartilhamos e denominamos de conhecimentos. A repetição de eventos nos faz crer na verdade inerente a sua frequência. Uma grande parte da mente está implicada nesse aspecto da reflexão sobre o que conhecemos.

A partir de Hume nós conseguimos distinguir os fatos auto evidentes da linguagem lógica e matemática, da produção de conhecimento através da indução.

A inovação reside na profusão de hipóteses explicativas que nos dão alguma segurança para arriscar comportamentos inéditos diante da pressão por se adaptar a condições que mudam  constantemente.

É por essa razão, então, que algoritmos não podem criar. Eles estão presos às suas regras de cálculo. Estão  confinados ao conhecimento do passado. É a habilidade de induzir uma hipótese a partir de uma frequência percebida que deu aos humanos sua relação com o fogo. Por dezenas, centenas de milhares de anos, estivemos em uma relação de simetria com as chamas.

Mas em algum momento, começamos a nos definir como sujeitos. De tal modo que se somos submetidos às contingências, também somos agentes causadores, como os seres míticos, que imaginamos serem os causadores do fogo. Se operamos a subjetivação de nossa condição, objetivamos a manifestação de um fenômeno (o fogo). Nesse jogo de objetivar e subjetivar a si mesmo e a diversidade em seu entorno, um vasto resíduo se constituiu: chamamos esta vastidão atemporal e sem medida, de consciência.

As inteligências artificiais, que temos visto atuarem com grandes habilidades de replicar a linguagem natural humana, se valem da indução através das chamadas redes neurais.  Através do tratamento algorítmico de uma grande quantidade de dados elas são capazes de gerar uma diversidade de resultados.

Nesse processo, elas buscam um padrão de resultados que pode ser constantemente refinado na direção de uma frequência estatística. O que vemos é um processo indutivo através de repetições que permitem a máquina nos apresentar uma síntese que nos dá a nítida impressão de um pensamento.

Partes significativas do que atualmente consideramos como mecanismos implicados no fenômeno da consciência estão presentes nas inteligências artificiais. Mas sentimos que elas não estão, propriamente,  pensando. Por analogia, suspeitamos que as redes neurais estão, tão somente, calculando.

Curiosamente, o aprendizado de máquina parece conferir às máquinas algumas habilidades dos seres vivos,  como insetos. Mas nada próximo da reflexão criativa que os organismos humanos efetuam a partir de seu aparato neuromental.

A abdução aparentemente é o que ainda falta para as inteligências artificiais serem capazes de criar subjetividades. Abdução consiste na capacidade de “chutar” com uma precisão superior a da aleatoriedade.  É uma espécie de instinto dinâmico, ou intuição, que nos diz a possibilidade que algo imaginado tem de existir ou acontecer.

A combinação de indução, dedução e abdução tem alguma relação com o fenômeno da consciência. Obviamente que nada foi, de modo definitivo, explicado. Essa argumentação sobre o processo de formação da nossa consciência não diz mais do que: “um não existente surgiu de interações entre existentes”. É semelhante ao argumento, baseado em evidências, de que a vida surgiu das interações químicas da matéria. O ânimo vivendi se conecta, de modo ainda não compreendido, ao inanimado.

Mas no ponto em que estamos, a questão pode ser expressada da seguinte forma: Se esse conjunto de habilidades, que os hominídeos vêm refinando há 40.000 gerações, emergir nas máquinas no âmbito de um século ou meras décadas, o resultado é imprevisível.

Não temos eventos anteriores para fazer analogias com valor predictivo. Exceto os cataclismos climáticos e geológicos que operam nas escadas dos segundos, horas e dias e que estendem suas consequências para milhares e milhões de anos, nada parece similar as mudanças que podem acontecer diante da emergência de seres conscientes e não biológicos.

Máquinas assim podem nos destruir. Alternativamente, o que poderíamos chamar de consciências artificiais, podem mudar o caráter bioquímico que define a condição humana. Pessoas não biológicas podem vir a existir.

De qualquer modo, se nós mesmos não nos destruirmos, com as ferramentas que já criamos, podemos usar as que estamos criando para manter ativo o impulso vital que nos habita.