Por toda a pré-história e até bem recentemente a existência humana esteve diretamente associada a diligentes esforços de provimento da vida a cada dia. Na maior parte desse tempo o curso dessas ações de manutenção da vida tinham caráter inato e instintivo.
Somente com o surgimento de práticas elaboradas de caça e coleta e, mais intensamente, com a agricultura, o aprendizado somou-se aos hábitos instintivos, passando a configurar a ideia social de trabalho como modo de prover e caracterizar a existência e as culturas humanas.
Com o surgimento das civilizações pudemos observar a elaboração de sistemas complexos de articulação das diversas formas de trabalho numa máquina de provimento de abrigo, segurança e alimentação para as populações de cada agrupamento humano. Mas, foi com o advento da revolução industrial que o provimento da subsistência quotidiana passou a depender de sistemas dinâmicos e integrados de manutenção da vida e caracterização cultural da existência humana.
No decorrer do século XX foi possível observar a transformação do mundo do trabalho através da vertiginosa aceleração da mecanização e automatização dos processos de produção de bens e serviços necessários a manutenção da vida e dos modos de vida. Lentamente a sociedade hiper industrializada vai tomando o lugar residual dos modos de vida tradicionais em todo o planeta.
Entretanto, a revolução tecnológica não muda apenas o imemorial modo de vida humana. Ela também revoluciona a si mesma. O trabalho, como signo da produção de serviços e bens, é submetido a redução do mercado de bens simbólicos ao valor monetário. Tudo é, em última instância, moeda no hipercapitalismo em que estamos mergulhando nesse início de século.
Sistemas complexos e multidisciplinares como os sistemas de saúde estão sendo amplamente afetados pela eclosão de novas tecnologias.
Vejamos um exemplo concreto:
Uma intervenção num processo hemorrágico implica numa série de averiguações diagnósticas relacionadas a identificação de sua causa ou causas.
Num caso muito específico, e raro,de hemorragia bucal, todos os parâmetros mantêm-se normais. Mesmo assim, os episódios hemorrágicos permanecem. Vários médicos investigam, sem sucesso, as causas. O grupo de especialistas trata as consequências com várias estratégias clínicas, incluindo massivas transfusões de sangue.
A cada batalha o grupo de especialistas vê seu paciente piorando, avançando na iminência da confirmação do prognóstico mórbido, sem que uma explicação definitiva para a causa das hemorragias seja encontrada.
Num expediente desesperado a intervenção de um cirurgião dentista é requisitada. Finalmente, uma fratura no maxilar inferior do paciente é detectada. É essa fratura que causa, intermitentemente, a ruptura de uma artéria. A causa é identificada no último momento em que a recuperação do paciente ainda era possível.
O dr. House, protagonista do seriado médico famoso, afirma em um episódio, que especialistas em enigmas diagnósticos raros irão matar alguns pacientes que seriam salvos por clínicos gerais executando protocolos simples e estatisticamente muito eficientes. Por outro lado, ele diz que esses especialistas irão salvar milhares de pacientes com doenças raras que nenhum clínico geral estaria em condições de ajudar.
Atualmente, fica cada vez mais evidente que a utilização de sistemas computacionais cognitivos podem acessar gigantescos bancos de dados e processar respostas eficientes para orientar especialistas médicos na resolução de mistérios como o do exemplo descrito acima.
O caso clínico descrito primeiro e a cena do seriado de TV citado depois são ótimos para explicar as profundas transformações no mundo do trabalho, não apenas para operários mas também para engenheiros, médicos, advogados e muitos outros especialistas. A eficácia de sistemas computacionais cognitivos, no entanto, não pode significar uma depreciação do valor dos seres humanos.
A pior análise desse fenômeno é a que emerge da teoria do liberalismo econômico. De modo imediato, eles percebem, na utilização da tecnologia do século XXI, uma depreciação monetária do valor do trabalho braçal e intelectual. Isso resultaria numa depreciação da própria existência humana
A onda de desregulamentação do mercado de trabalho se deve a uma leitura equivocada dos efeitos dos incrementos tecnológicos no potencial humano de provimento da vida e da existência humana. A proposta do ministro da saúde da Inglaterra de empregar enfermeiros a partir do uso de aplicativos do tipo Uber é um sintoma dessa precipitada suposição da depreciação do valor monetário do trabalho técnico científico.
Jamais existiram civilizações com tantos recursos para eliminar as mazelas humanas e sociais como agora. No entanto, a elite dos donos do gigantesco capital mundial acumulado no sistema financeiro, só enxergam a oportunidade de intensificar o nível de exploração do trabalho e a exclusão da maioria da população do acesso aos bens de civilização.