Teatro no CAPS: atravessar a porta, sustentar o encontro e brincar de existir

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Se tem uma coisa que aprendi no estágio no CAPS II é que cuidado em saúde mental é muito mais do que consulta, prescrição ou protocolo. Cuidar, aqui, também é construir cenas, dar voz ao corpo, inventar mundos possíveis.

É nesse contexto que conheci e participei da oficina de teatro conduzida pela Companhia Atravessa a Porta, um projeto de teatro, vídeo-arte, performance e cinema que existe desde 2012 dentro da lógica da cultura antimanicomial e da saúde mental coletiva. A companhia não é só um grupo de teatro. É espaço de cuidado, de criação, de invenção de vida, onde o sofrimento psíquico não define ninguém, mas se transforma, se reinventa e se expressa em outras linguagens.

Como estagiária de psicologia, participei de várias oficinas, mas quero compartilhar aqui um dia em especial, que me atravessou profundamente.

Era uma tarde muito quente, abafada, e o ar-condicionado da sala não estava colaborando. Estávamos programados para fazer uma atividade com o manequim da companhia, carinhosamente apelidado de Tonhão, que costuma ser personagem cativo nas encenações e criações do grupo.

Diante do calor, um dos frequentadores sugeriu que fôssemos para a área externa. E o mais bonito: não foi uma imposição, nem uma decisão isolada. Ele propôs, o grupo foi consultado, e todos concordaram. As facilitadoras da oficina acolheram imediatamente a ideia e saíram por alguns minutos para organizar o espaço externo — levar cadeiras, objetos e tudo que pudesse contribuir para que a oficina acontecesse da melhor forma.

Enquanto isso, sugerimos que os participantes começassem, de forma livre, a pensar nas cenas que iriam criar com o Tonhão. E foi aí que percebi o que Winnicott chamaria de desafio do sustentar o vazio. Sem a mediação direta das facilitadoras, houve dispersão, ruído, hesitação. E, ali, aprendi algo precioso: que nem todo silêncio precisa ser preenchido, que o encontro também acontece nos vazios, nos intervalos, nas tentativas de se organizar coletivamente.

Quando retomamos, começamos com uma dinâmica sensível e potente: moldar o corpo do outro. Em silêncio, um se colocava como “argila” e o outro como “escultor”. Havia respeito no toque, cuidado no gesto e, no silêncio, uma escuta que não passava pela fala, mas pelo corpo. As histórias surgiam nas poses, nas expressões, nos olhares — mesmo sem serem ditas.

Logo depois, brincamos com o jogo Boing, Zip, Zap, que trouxe leveza e muitas risadas. Percebi o quanto o brincar, aqui, não é só diversão. É dispositivo de encontro, é construção de confiança, é criação de um lugar onde se pode existir de outro jeito.

O momento mais bonito — e que me emociona só de lembrar — foi quando um dos frequentadores, geralmente rotulado como “agressivo”, percebeu que um colega com deficiência física teria dificuldade para acessar a parte do terreno onde faríamos as fotos. Sem que ninguém pedisse, ele se antecipou, segurou sua mão e o ajudou a descer o barranco com tanto cuidado, tanta delicadeza, que me faltam palavras para descrever. Ali, o cuidado se materializou no gesto.

A foto final com Tonhão não carrega só uma pose. Carrega o afeto de quem segurou, cuidou, ajustou, sorriu. O celular passou de mão em mão, ninguém sabe quem apertou o botão — e talvez isso seja o mais bonito: foi coletivo, foi grupo, foi roda. (infelizmente, não consegui anexar a foto à esta publicação).

Voltei para casa pensando que o teatro, dentro do CAPS, não é só uma atividade. É um espaço transicional, um lugar potencial, onde é possível experimentar ser, criar, brincar, sustentar a vida. E, como bem nos lembra a lógica da Reforma Psiquiátrica e da cultura antimanicomial, atravessar a porta é exatamente isso: sair do lugar do isolamento, do sintoma, e construir, juntos, cenas onde viver vale a pena.