O Comitê Nacional do Uso Racional dos Medicamentos acaba de lançar o documento USO DE MEDICAMENTOS E MEDICALIZAÇÃO DA VIDA: recomendações e estratégias. A obra é fruto de intenso trabalho de trocas e discussões com uma questão de fundo: como regular e conter os abusos relacionados ao uso de medicamentos?
Para isso, o Comitê, que é interdisciplinar, se reuniu em oficina no final de 2018 e discutiu a medicalização da vida, uso de medicamentos por grupos em situação de vulnerabilidade e uso racional de antimicrobianos.
A obra é um importante instrumento para propor discussões sobre a prescrição de psicofármacos relacionados à infância, população prisional, no contexto socioeducativos e na Atenção Básica, sobretudo voltado para a terceira idade.
O que justifica o uso de Metilfenidato em crianças? E o uso de Clonazepam em idosos?
Porque naturalizamos a contenção química que ocorre em presídios e nos abrigos socioeducativos?
Afinal, o que esse quadro de uso de medicamentos diz sobre nossas interferências no processo saúde e doença?
O que significa ser o maior consumidor de ansiolíticos e benzodiazepínicos?
Segundo o Ministério da Saúde, entre 2012 e 2016 houve aumento de 30% na quantidade
de serviços de saúde do SUS que acompanham pessoas com depressão. No mesmo período,
houve crescimento de 87% na dispensação de medicamentos registrados no Sistema Nacional
de Gestão da Assistência Farmacêutica (Hórus) e no sistema informatizado do Programa
Farmácia Popular do Brasil – Rede Própria, aumento de 61% de consumo no mercado total de
antidepressivos e de 3% no mercado de antidepressivos que constavam da Rename. (:15)
Para reverter esse tipo de quadro
Aponta-se que é preciso investir em equipes multidisciplinares de saúde que promovam a
integralidade do atendimento, priorizando a atenção e promoção à saúde no território e não
somente na reabilitação por meio do tratamento farmacológico. O combate ao fenômeno da
medicalização deve contar com ações de promoção da saúde, de modo a fornecer cuidado
integral e multidisciplinar para além da prescrição medicamentosa, considerando o acesso
a outras formas de tratamento. Isso passa necessariamente pela mudança na cultura que
relaciona o direito à saúde a obtenção de uma prescrição de medicamentos. Acredita-se que
este trabalho possa estimular um maior debate a respeito dessa temática, visando promover
os avanços necessários para a desmedicalização por meio da desprescrição de medicamentos
e, consequentemente, do seu uso racional.
Essa é uma das questões que perpassam uma tensão entre o sistema de saúde e sua relação com medicamentos: como fornecer medicamentos de forma racional, em grupos vulneráveis?
Como não incorrer no erro de negar terapia medicamentosa a grupos vulneráveis fazendo uso do pretexto de estar aplicando o uso racional?
É preciso trazer a discussão sobre o Uso Racional dos Medicamentos para o cotidiano dos serviços de saúde, para as equipes de ACS e de todos os trabalhadores. Afinal, o medicamento não é o fim do acolhimento, mas somente uma das tecnologias a serem utilizadas para o reabilitação no processo saúde-doença.
E por vezes não sabemos como responder ao usuário que aguarda ansioso pela consulta de saúde e sai desiludido sem uma caixa de medicamentos na mão.
Esse instrumento serve para que seja possível discutir e descontruir essa realidade em nossos serviços e em nosso cotidiano.
Aproveite também para acompanhar e propor esse tipo de discussão no Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade que é membro do Comitê Nacional de Promoção do Uso Racional dos Medicamentos e participou na construção desse instrumento.
Por Sérgio Aragaki
Fundamental esse post.
Não é contra o uso e a prescrição de medicamentos. Estes algumas vezes são necessários.
É contra a produção de diagnósticos e a prescrição de terapêuticas que desconsideram as condições e os determinantes sociais em saúde, na medicalização o foco é reducionista, centrado somente o indivíduo e na suposta doença, e este é alvo de um intervencionismo que desconsidera as suas reais necessidades em saúde. Muita iatrogenia. Muita produção de violência. Muito exercício de poder que produz adoecimentos. Portanto, o trabalho aqui compartilhado é uma resistência a tudo isso e uma afirmação da vida, uma luta para que haja um cuidado à saúde, baseada no conceito ampliado de saúde.