A racionalidade formal não é a personagem principal

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Uma avaliação preliminar nos leva a concluir que algo está errado na forma como investimos os recursos destinados ao setor da saúde em nossos pais. Os dados pipocam pelas páginas dos jornais é difícil encontrar uma costura analítica que os articule dentro de um mesmo campo conceitual minimamente coerente. A crise no atendimento a demanda divide espaço com as notícias sobre o faturamento dos convênios privados e públicos de saúde. Tudo cresce: da expectativa de vida aos investimentos. O recenseamento epidemiológico é baseado em evidências que mudam num mapa construído a cada semestre e atualizado semana a semana.

O cuidado com a saúde é uma atividade econômica regulada pelas leis não escritas do mercado monetário. Mas também fortemente favorecido pelas leis do estado democrático de direito que é operado no sentido de acrescentar cada vez mais ofertas de terapias inovadoras, gerando lucros para a industria de tecnologias, equipamentos e insumos em saúde. Cresce o setor da indústria do cuidado. Incluídos aí a industria farmacêutica e a robótica de próteses, a dos cuidados inter-humanos, entre outras tantas. Cresce, em meio a uma fartura de cuidados e atenção, a sensação de abandono e negligência. Não há tempo suficiente para assimilação dos ganhos e de seus respectivos riscos. Na medida em que cresce o cuidado possível, crescem os vínculos de risco que conectam humanos e não-humanos interligados nas redes sociotécnicas de comunicação.

Uma conclusão nesta área é sempre hipotética e provisória. Pois sobre qualquer hipótese incidem as revoluções por minuto da sociedade hiper tecnológica. Os problemas da atenção na alta complexidade recorrentes nos grotões do país se conectam aos problemas da lotação das emergências nos grandes centros urbanos.

O coronelismo, o patrimonialismo e o clientelismo político se articulam com as cláusulas constitucionais e das leis complementares que instituem e regulam o Sistema Único de Saúde. Esta articulação serve, no mais das vezes, para gerar perversão política em meio a iniqüidades no sistema. Porém simultaneamente temos os ganhos estatísticos em relação ao perfil epidemiológico da população.

Um paralelo pode ser estendido àquela situação de corrupção e dano ambiental em que foram construídas as grandes usinas elétricas no Brasil nos anos 70. Ninguém sonharia em abrir mão delas, em nome do repúdio ao ambiente corrupto em que estas obras foram realizadas, se considerasse o benefício que as mesmas trazem as condições de qualidade de vida da população pelas quais elas são, em parte, responsáveis.

 

O fundamental é que temos uma situação que não pode ser definida globalmente devido à diversidade dos cenários locais e do valor relativo da atenção à saúde que simplesmente não pode ser oficialmente reconhecido.

Num bairro violento, tomado pelo tráfico de drogas, a expectativa de vida de um recém nascido não passa dos 21 anos. Em um outro bairro, da mesma condição econômica, mas com eficientes laços de coesão social e comunitária ela pode saltar para os 70 anos. Maior do que a expectativa de vida entre executivos de empresas com alta competitividade. A cobertura de Postos da ESF pode modificar os índices de mortalidade infantil, mas não pode incidir sobre os índices de drogadição entre a população jovem e desempregada. Também não pode incidir sobre a pressão para o lento suicídio coletivo patrocinado pelo estímulo midiático aos comportamentos de risco: consumo de álcool, epidemia de obesidade e sedentarismo, etc.

Em tese, as incidências de qualquer medida de saúde pública podem ser inferidas, mas em grande medida, são apostas baseadas em cálculos de probabilidade. Os custos da racionalidade parecem conflitar com tendências inatas do comportamento humano. O que chamamos de racionalidade parece ocupar um cenário restrito em nossas considerações para tomada de decisão. Muitos fatores estão incidindo sobre a ação. Poucos destes fatores são meramente racionais. Na maioria são tomadas de decisão baseadas em instintos básicos de sobrevivência, inscritos em nosso comportamento desde a aurora da humanidade.

Não é porque o Estado existe e tem peso importante na vida das pessoas, que ele é decisivo em última instância. Na verdade, a racionalidade em que o Estado é embasado se configura em nicho para o florescimento do crime organizado, que por sua vez é baseado em uma ética menos do que tribal e tão violenta como a das matilhas de lobos.