Tudo vira dinheiro
Vamos voltar a pensar sobre a questão do SUS de um ponto de vista social, político, cultural e jurídico-legal. Na vida os seres humanos lidam com o que se apresenta em cada instante. Desta forma a maior parte de nossas ações é regida por hábitos incorporados e disparados por percepções que não chegam ao exame da mente consciente.
O social e o cultural podem ser medidos em termos de esforços políticos ou coletivos para racionalizar e examinar a vida criando, de forma consciênte, vínculos e regras. Estas regras tornan-se as mais diversas formas de tecnoplogias de (e para) viver a vida. Essas tecnologias por sua vez, redefinem constantemente o que seja o conceito (da hora) de viver a vida.
O SUS é um artefato humano expresso em linguagem jurídica, com uma lógica interna opaca e acessível apenas aos escribas da lei. Além disso, ele se configura como um evento e lugar do amanhã tentando se estabelecer no agora. Uma pós-modernidade autêntica no sentido em que tenta ser de fato o que só poderia ser no futuro e em outras condições – melhor e maior financiamento é apenas uma dessas condições necessárias no presente e sempre adiada para o amanhã.
Como arte (e) fato sociocultural ele emerge das lutas de camadas sociais militantes, que conscientes das desigualdades sociais e de suas conseqüências lutaram por constituir um Estado Democrático de Direito (operado em um regime de participação social, consciente e autônoma) ao longo de todo o século XX.
Uma luta bem sucedida em vários aspectos. Um deles, o de consagrar à vida comum, belas trajetórias de luta pessoal. Mas a mais importante delas foi imprimir a uma boa parcela do espectro político de esquerda uma bandeira de luta permanente. Tanto, seja de instituição, de consolidação e de aperfeiçoamento constante, quanto o seja por colar ao caráter mesmo do Estado brasileiro o valor da igualdade.
Mas isso não impediu (e não impede) que a outros atores políticos (conservadores de direita) fique delegada, por injunção sociocultural, a tarefa de subverter a letra da lei impondo a ela as determinantes de fato que operam a partir de leis não escritas.
Um exemplo claro de como sistemas antagônicos e irreconciliáveis se apresentam aos humanos em sua vida social é a carta constitucional norte americana. Na letra da lei não se fala em competição, ganância ou busca pelo lucro a qualquer custo. Não obstante, toda a tinta gasta em palavras como “nos”, “liberdade” e “bem comum”; gravadas na letra da lei, isso não impediu que os EUA sejam o país em que a identidade nacional é mais marcada pelo regime econômico – o capitalismo – do que pelo espírito democrático e igualitário que animou os pais fundadores daquela nação.
Assim é com o SUS e de resto, toda a constituição brasileira. Uma parcela muito grande de nossa população por séculos teve de aprender a sobreviver em ambientes sociais de super exploração da capacidade de trabalho. Especialmente durante o período da escravidão.
Este aprendizado, repetido por inúmeras gerações em nossa história, tomou e toma grande parte do tempo de vida das pessoas das camadas mais pobres. Por isso, elas não têm energias para lutar e defender um sistema de produção de igualdade de direitos que tornaria obsoletos os enormes esforços empreendidos para sobreviver em meio à histórica exploração da vida. As pessoas precisam e aprendem a se virar, sobreviver no dia a dia, recalcar e sublimar ressentimentos.
Ao contrário do que inferimos, de forma inaivertida, as pessoas não nascem com uma propensão natural para aderir ao ideário iluminista e nem tem de ser automaticamente progressistas por serem humanas.
O SUS representa uma tamanha ruptura com a cultura e o modo de viver da maioria dos brasileiros que só poderia ser consolidado ao longo do processo histórico. Mais de 20 anos e ainda não há uma segurança quanto à permanência e a ampliação dos dispositivos que este sistema de saúde põe a serviço da sociedade que o sustenta.
Tememos, com razão, a perda dos ganhos em matéria de igualdade social obtidos com o SUS. O início do século XXI é marcado por uma economia em rede imaterial que agrega tecnologias que a transformam as relações sociais de maneira que não podemos compreender completamente.
Para cada marxista ou liberal com uma boa dose de conhecimento e estudos profundos sobre o tema há incontável número de conhecedores vulgares que em nome de teorias econômicas complexas fazem o conhecido, inato e inconsciente jogo fisiológico em defesa de seus interesses de classe ou grupo social. Agem com mais proximidade da lógica das matilhas de lobos ao usar seus estratagemas de sobrevivência política e econômica do que com a racionalidade ocidental.
A própria mercadoria e seu motor instituinte, o desejo, estão passando por uma transformação radical no capitalismo do século XXI. Já lemos aqui na rede um relato a respeito de como as relações sociais estão se tornando mercadoria. O tempo e a existência relacional das pessoas, os sagrados encontros espinosianos, o “entre” subjetivo, etéreo, imanente e transcendente, onde a vida tem seu verdadeiro palco e atores principais, virou mero pulso onde tempo se converte em dinheiro.
Tudo é mercadoria. Logo tudo é dinheiro. Dia desses perdi meu celular e estando no quiosque da operadora de telefonia recebi uma oferta de levar comigo, “de graça” mais um chip com um número adicional. Perguntei a bela atendente por que razão eu “desejaria” ou “precisaria” (vejam que os dois termos se confundem) ter mais de um número para fazer chamadas em um mesmo aparelho celular. Ela com naturalidade me respondeu: – É que você pode ser casado, ter uma namorada, essas coisas. Eu respondi que não era necessário e depois refleti.
A moça tentou me vender um plus de privacidade. Remédio para uma necessidade advinda da possibilidade de conciliar em um mesmo tempo as comodidades do namoro e as responsabilidades da vida familiar, ou vice e versa, tanto faz. O capitalismo não fala com o adulto em nós. Ele se dirige a criança. E vamos de situação em situação tendo que lidar com as coisas como elas se apresentam.
Uma oferta de comodidades e conveniências sem limites ao invez de substituir a selva ancestral, que habitávamos, apenas a converte em uma nova selva high tech onde as velhas inseguranças e angústias estão compensadas pelos desassossegos contemporâneos.
O rápido diálogo descrito logo acima representa bem um princípio aparentemente inescapável das relações econômicas: Reduzir, subjugar e simplificar tudo em um valor monetário. De modo que a vida “verdadeira”, a vida vivida corretamente, intensamente, moral e amoralmente, seja uma miragem sonhada por todos e próxima de uns poucos afortunados que podem jogar o jogo sem fim de tentar comprá-la.
Com o SUS é a mesma coisa. Levar uma rede de PSFs, uma instalação hospitalar de tratamento oncológico ou de transplantes, uma rede de CAPS ou de Residências Terapêuticas até onde estão as populações desassistidas, implica em humanizar a existência de milhões de pessoas.
Por outro lado implica em fomentar uma indústria do cuidado e da atenção (talvez a última que seja operada por mão de obra humana) e fomentar um mercado de relações em rede entre fornecedores, gestores, corporações de interesses profissionais, posições de investidores, etc. Não importa se de forma legal ou criminosa. Os custos definem os riscos e todos fazem suas apostas antes de jogarem-se os dados.
Mas principalmente, implica em contradições entre desejos imoderados e hábitos baseados em leis não escritas, contradição entre lógicas e razões diferentes. As luzes iluministas são multicoloridas. Embaralham-se os códigos jurídicos nascidos das lutas dos atores sociais militantes. E igualdade na lei pode ser privilégio na prática.
Já refleti sobre isso aqui neste blog. Em seguida estarei publicando o artigo de hoje de Elio Gaspari sobre o cartão SUS nos governos de FHC e de Lula.
Foram 400 milhões de reais gastos em uma tecnologia já existente e disponível em versões atualizadas que serve muito bem ao sistema financeiro e a seus lucros obscenos, mas que não pode servir a consolidação do SUS. Uma razão forte disso é o efeito de transparência e inibição da corrupção endêmica que temos dentro e fora do sistema de saúde que seria causada pelo cartão SUS.
Parece uma retomada de uma mesma reflexão que fiz no texto sobre os híbridos de humanos e não humanos de Bruno Latour que poderiam servir ao SUS e aos brasileiros.
Gaspari ocupa uma posição e assume um pressuposto no cenário sociocultural: O Estado democrático de Direito com letras maiúsculas é a regra. Fora disso há o crime e as más intenções, o cálculo dos interesses pessoais e a incompetência para gestão do bem comum.
O Juiz não são os juízes, nem estão no judiciário. O Juiz é o povo. O povo seja lá tudo o que isso signifique é que deve legitimar ou constituir a legitimidade. É o parâmetro da razão em um mundo sem sentido além daquele que emerge em cada situação concreta. Uma metafísica das coisas, dos fatos e dos humanos em movimento. Nisso, concordo com ele.