Tempestade

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Já se vão 20 anos de trabalho em saúde. Primeiro como Atendente, depois como Auxiliar e agora como Técnico em Enfermagem. A última década inteira com saúde mental em um Serviço Residencial Terapêutico. Uma faculdade de Ciências Sociais, uma especialização em Humanização, um tempo como militante e dirigente sindical e agora como assessor político-institucional.

Escrever, fazer poesia, crônicas do cotidiano, reflexões teórico-filosóficas é raro no ramo, especialmente nessa categoria. Mas somos muitos e carregamos o fardo da realidade sufocado em nossas reminiscências, guardado nas profundezas onde as ondas sonoras, e as impressões visuais se tornam memórias.

Atualmente, sou um otimista apaixonado e eclético. Um agnóstico fervoroso e seduzido pela metafísica espinosiana. Duvido de minha fé e minha fé são minhas dúvidas. E me orgulho muito, de neste jeito de ser, ter passado pelas mais duras provas a que pode se submeter um otimista.

Conheci, nessas andanças de cuidador, casos como o da jovem que aos cinco anos e meio foi encontrada brincando numa poça de sangue, ao lado da mãe desacordada, que havia sido esfaqueada pelo pai, um viciado em pleno surto violento.

Soube de muitos episódios da vida desta jovem: dos horrores vividos nos grandes internatos da FEBEM dos anos 80 e 90 aqui no Sul, nas internações manicômiais e nos dias de inverno na adolescência, passados quase todos nas ruas de Porto Alegre.

Estive ao seu lado durante as crises de agitação psicomotora causadas por um passado que não cessava de retornar, de um desespero de estar presa num aqui/ontem inescapável. Depois a perdi no mundo.

Vi os filhos de pais incapacitados, adotados pela rua e confortados pela cola de sapateiro, carinhosamente chamada de loló, transformarem-se em adultos construídos pela infância destruída.

Agora vejo uma legião maior ainda de crianças e adolescentes encontrarem, no refugo do preparo da cocaína dos pais, o acolhimento letal que lhes faltou de uma pessoa, e por extensão de toda a nossa geração. Uma geração capaz de mimar até o desamparo sua própria prole e incompetente para produzir o mais eficaz dos instrumentos e métodos educacionais – a comunidade.

No gosto amargo das vivências cotidianas de quem viu um recém nascido prematuro contorcer-se em uma incubadora, em síndrome de abstinência do álcool que a mãe consumira durante a gestação, eu experimentei outras histórias.

Conheci outros desfechos e deles não falo. Com o cuidado de alguém que protege uma chama em meio ao vendaval de uma tempestade que trará a derradeira chuva. O aguaceiro no qual aceito o desafio de manter a chama acesa.

Desta chama só lhes dou uma notícia: Sou otimista.