Resenha Íntina

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Tenho apresentado, reiteradamente, uma série de autores com os quais repercuto, elaboro e produzo o sentido de minhas práticas como trabalhador do SUS. Afiliações teóricas, originadas em leituras não representam há muito tempo etiquetas suficientes para dar conta de nossas identidades sempre mais complexas. Vamos sendo pelo que vamos lendo, mas como lemos muito, não somos conformados por um ou outro autor, mas pelo trajeto único que escolhemos e que nos acolhe. Alguns autores, assim mesmo, nos são caros. Como nossos amores, que por florescerem entre muitos possíveis, são únicos. Singulares justamente por serem um termo em meio a uma riqueza inestimável de possibilidades.

Porém, sinto que há certa audácia em evocar o pensamento conservador em nosso coletivo pensante. Em minha defesa alego que o pensamento conservador não possui (pelo volume de leitura que pude acumular até o momento) uma tradição brasileira, genuína ou autêntica, por assim dizer. Nossos liberais gostam da proteção do Estado. E nossos conservadores, muitas vezes, são apenas reacionários. Além disso, ninguém entre nós precisa “ser” marxista, gramsciano ou trotskista, para defender o SUS.

Desconsiderei a etiqueta e ousei pensar com referências teóricas e filosóficas bastante atuais e múltiplas. Mas uma espécie de ruído não parava de me alertar. Existe um livro importante em meus estudos mais recentes e em minha trajetória de trabalhador do SUS e apoiador da Política Nacional de Humanização – PNH. No entanto, como leitura de fundo, ele não emergia na bibliografia apresentada a cada texto que assino. Encontrei uma forma inusitada de delinear uma caminhada antiga de onde reconheço a trajetória que me permite ousar compor uma análise do mundo (que já é outro) no momento mesmo em que o enuncio.

Esta resenha íntima, então, se concretiza na forma de uma resenha do livro “Artesania Clínica – questões para uma prática da multiplicidade”, de Maria Célia Detoni, da editora Marcavisual – Porto Alegre, 2009. Vale muito e de várias formas. Para mim é uma leitura que fala de afiliação num sentido de construção permanente de si mesmo.

Os capítulos deste livro têm sido pontos de reencontro, retornos literários que têm entremeado minhas escritas recentes. Chegou a hora de partilhá-lo.

Evidentemente que meus textos são pouco acadêmicos. Mas sou muito rigoroso com o apontamento das origens das idéias que tomo de empréstimo para tecer estes quase ensaios, quase artigos. Acredito-me bem sucedido ou, ao menos o mais possível, para quem escreve como eu, sem supervisão.

Já no prólogo, Gregório Baremblitt aponta neste precioso livro um “ecletismo superior” para dar pistas da tessitura de sua escrita. É uma referência a Hume (na leitura de Deleuze) que fala em “Empirismo Superior”. A autora mesma, no capítulo “A inquietude como força vital”, traz ao texto as palavras de Foucault, em Microfísica do poder (1998) “… o importante é se chegar ao fim diferentemente do que se era no começo”.

Adiante, no capítulo “Pensamentos mutantes sobre a clínica” nos alerta sobre a proteção contra a cegueira causada pelos regimes de luz. E eu rememoro as restrições ao iluminismo e aos regimes de verdade que, amparado em minhas leituras de John Gray, tenho reiterado em meus textos. Há espaço para esse tipo de riqueza que coloca vários olhares sobre um mesmo fenômeno. Multiplicidade certamente não é igual a uma anarquia, caos ou relativismo absoluto. Ao contrário, é uma estratégia para parir ontologias. De modo que é essa trama que aproxima pensadores que seguem o pensamento em direção a suas conseqüências.

Todo o transcorrer do texto, traz uma surpresa que me incita uma emoção renovada. Leio o livro com a intensidade de um corpo que vive. O tempo que ele consome é um tempo pulsante, irrigado e encarnado. Uma recomendação de quem e para quem assume o nomadismo como uma forma de respeito à multiplicidade do mundo.

Finalmente, por que é uma resenha íntima? Isso poucos leitores saberão com precisão. A maioria irá intuir com algum êxito. Outros aceitarão como subjacente que a indicação de uma leitura, na forma de resenha, possa conter um aspecto da intimidade de quem a recomenda.